chamo-me António, fiz anteontem setenta e dois anos e não me considero nada mal, quer física quer psiquicamente. não fosse o testemunho da porra do cartão de cidadão e talvez estivesse apto a começar uma vida nova, mesmo que amparado na bondade de alguns comprimidos, colesterol, tensão, tesão, neste último departamento as mulheres têm mais sorte... seja como for, aderi à moda das gentes de calções de lycra que percorrem, em passo rápido ou em corrida, as múltiplas ciclovias com que os autarcas prodigamente debruaram as avenidas da cidade. às vezes até pratico em grupo, somos uns cinco ou seis, a mais nova, uma rapariga de pouco mais de vinte anos, toda ginasticada, está bom de ver, e os outros variando entre a minha idade e a dela, embora mais próximos desta. tenho os pernis mais musculados do que aos quarenta, em que o meu corpo se derramava, um bocado enfezado, submerso em pesada carga de trabalho e com pouco tempo para luxos, por essa altura ainda não havia a cultura dos ginásios, ciclovias nem sonhadas, e, se se visse um velho a correr pela rua fora, pensava-se logo que estava a fugir do asilo ou do Júlio de Matos e, havendo tempo e pachorra, ligava-se para o cento e quinze, ah! pois, isso do cento e doze já é uma modernice. ainda se me nota um pouco de barriga, mas está a diminuir, volta e meia ponho-me a sumos e vegetais para desintoxicar, o cabelo é o pior, deu em arrepiar caminho, da frente para trás, deixando-me a descoberto toda a parte da frente da cabeça, aí até ao meio, em compensação, sobram-me uns tufos que espreitam por trás das orelhas como duendes atrevidos e escorregam pelo pescoço abaixo, enrolando-se no colarinho das camisas ou no rebordo das t-shirts, agora dei muito em usar t-shirts, mas, voltando atrás, devo actualizar que pus fim à rebeldia desses cabelos à solta, tudo por causa da Aurora, Aurora, este nome traz-me sempre à ideia a aurora boreal e daí interrogo-me por que raio se há de dar um tal nome a uma rapariga acabada de nascer, agora talvez já não haja Auroras, digo, raparigas chamadas Auroras, auroras boreais continua a haver e não hei de morrer sem ver uma ao vivo e a cores, que gosto muito dos fenómenos estranhos da natureza... a Aurora é minha amiga recente, mais nova do que eu, deve andar pelos sessenta e picos, mais pico menos pico, vai dar ao mesmo, conhecemos-nos na academia sénior, simpatizámos um com o outro e vamo-nos encontrando por aí para conversar sobre o que calha ou para atualizar estados, como ela gosta de dizer. a dada altura, virou-se para mim e pronunciou, meio a sorrir, talvez com medo que eu levasse a mal, embora não fosse o caso, - ó António, não se ofenda com o que vou dizer, mas parece-me que ficava melhor se cortasse esses excedentes capilares (às vezes, dá-lhe para falar assim, ainda não percebi bem se a gozar ou a sério) que lhe sobrevoam as orelhas e o pescoço, e eu, - ora essa, até agradeço, e, vai daí, resolvi acatar o conselho, fui logo de seguida a um cabeleireiro unissexo, perto do sítio onde tomámos café, ali à Almirante Reis, e fiquei espantado com a dimensão e a decoração do espaço, enorme e todo a brilhar de metais, espelhos e falso cabedal prateado, com um ar muito novo, parecia que tinha entrado numa nave espacial e senti-me protagonista ou simplesmente figurante, tudo dependendo de como o corte saísse, dum filme de ficção científica e nisto dirigiu-se-me um fulano muito rebolado, com umas calças brancas coladas às pernas e ao resto, presas por um cinto cheio de picos metálicos e uma t-shirt preta de gola redonda, sem mangas, com aplicações prateadas na parte da frente, cabelo ultra-platinado, acho que é assim que se diz, pestanas mais reviradas do que as da Marilyn Monroe e uma boca excessivamente brilhante, ignoro o que era aquilo, com um gesto de mão deveras pronunciado, como se segurasse uma bandeja, que, em reacção ao meu pedido seco de corte de cabelo, respondeu - o sinhô mi disculpi, más mi páreci qui dívia fázê um álisámento, sinão o seu cábelo vai crêcê prós lados... e ainda continuava a debitar palpites, quando eu, já a ficar esgazeado, lhe vociferei nova ordem cortante, - é só cortar e rapidinho que estou com pressa, - o sinhô é qui sábi, foi a resposta dele, com um jeito todo amuado, de quem se sente incompreendido, e não, não sou homofóbico, não tenho nada contra homossexuais, não tolero é bichas, montadas em puro exibicionismo como se toda a gente tivesse de saber o que fazem nas suas horas privadas, ora, haja decoro e paciência! a Aurora tinha razão, o cabelo ficou bem melhor, agora a cabeça está mais homogénea, a chamar menos a atenção para a clareira dianteiro-central e transpiro menos do pescoço nas minhas corridas diárias pelas ciclovias da cidade, embora deva acrescentar que a careca nunca me impediu de despertar o interesse das mulheres, até tendo a acreditar quando se diz que é dos carecas que elas gostam mais, bem, se não gostam também não se queixam, e não digo isto para me gabar. o pior, repito, é mesmo a porra do cartão de cidadão, que bem podia chamar-se espelho do cidadão, da última vez que actualizei o meu, as rugas nasolabiais ficaram tão marcadas que pareciam cicatrizes, fui lá reclamar, a funcionária baixou os olhos para o cartão, levantou-os para a minha cara, voltou a baixar e a levantar e, impavidamente, decretou, - confere, afinal o que é que o senhor pretende?, tirei-lhe o cartão das manápulas e tomei de assalto a ciclovia mais próxima para espalhar a raiva e a frustração, depois, o meu neto mais novo, o Pedrito, que tem cinco anos, pegou a mania de me olhar fixamente e perguntar, com os olhos muito fixos, como quem tira uma fotografia, - porque é que o avô é velhinho? e eu de me rir, a disfarçar, e ele a voltar à carga, - quando é que o avô vai morrer? e eu já meio atrapalhado a tentar explicar-lhe que não sou assim tão velho e que morrer morremos todos e o puto a desatar aos berros, - pai, o avô está a dizer que vamos morrer todos e tu tinhas-me dito que o avô é que ia morrer um dia destes, e o pai muito aflito a ver se o calava, a prometer-lhe um lego ou outra treta qualquer e a dizer-me, - o pai não ligue, são crianças, são coisas que ouvem na escola, até que abreviaram a visita e me deixaram em paz, entregue à problemática do cartão do cidadão e tudo o que lhe vem associado. nem de propósito, há dias, não sei se por causa da exposição às forças da natureza, por via das aventuras nas ciclovias, se por outra razão qualquer, vi-me a braços com uma forte constipação ou resfriado ou gripe, não sei bem, só sei que não podia com o corpo, para ali esparramado na cama sem me conseguir mexer, era só tosse, febre e falta de forças, apetite em fuga e um enorme desamparo, ainda me passou pela cabeça telefonar ao meu filho, o pai do Pedrito, ou à minha filha, mas sei que têm uma vida do caraças, como foi a minha, é só trabalho, trabalho e mais trabalho, e ainda bem, é sinal de que não são vadios nem estão desempregados, e depois também precisam de descontrair e estar com os amigos nos tempos livres, compreendo isso perfeitamente, mas contive-me e resolvi esperar pela D. Gracinda, vem uma vez por semana dar um jeito à casa e sempre me ajuda nestas ocasiões, sem que tenha de chatear os meus filhos, só que desta vez, fosse pela violência da maleita, fosse pelo andamento do cartão de cidadão, dei comigo a pensar coisas que, já não sendo novidade, vou sempre adiando, refiro-me a coisas que qualquer pessoa e, muito mais, uma pessoa avançada na idade, deveria ter devidamente organizadas, tipo, o testamento propriamente dito, incluindo as disposições sobre o funeral, até já há um serviço duma funerária chamado funeral em vida que, segundo creio, responde antecipadamente àquelas disposições, não acredito que se trate de enterrar pessoas vivas!, o testamento vital e várias outras coisas de ordem prática, pensei que era urgente atar umas pontas que tenho andado a deixar por aí à solta, e, mal me regressaram as forças, embora não suficientes para voltar a atacar as ciclovias, resolvi dar volta aos arquivos e veio-me parar às mãos um dossier com dezenas de cartas que há décadas escrevi aos meus pais quando a empresa para a qual trabalhei de contabilista e, depois, de gestor, me colocou numa filial fora do País, mais concretamente, em Espanha. como as cartas tinham sobrevivido à morte dos destinatários, achei que mereciam um tratamento à maneira antes de serem destruídas, vai daí decidi lê-las, assim uma espécie de ritual de despedida, como se o papel e a tinta e o mais que ali foi gasto, incluindo a memória dos olhos e dos corações que as leram, não devessem ir parar sem mais a uma qualquer central de reciclagem enquanto simples lixo, que era o que certamente lhes sucederia se me sobrevivessem, e uma passagem, em especial, despertou a minha atenção, já não me imaginava a ter produzido uma tal asserção, de resto eventualmente tão sábia ou cínica ou ambas, era dirigida à minha mãe, pessoa deveras ansiosa, sempre preocupada com o bem da família ou melhor, com os males reais ou imaginários que a poderiam afectar, e, a terminar uma frase de incentivo a que descontraísse e gozasse a vida, eu dizia mais ou menos isto, de resto, coração ao largo, que quem nos pôs cá toma conta de nós (seja Deus ou seja lá quem for), e, ao reler esta parte, espantei-me com a frase, com o facto de a ter escrito, e não pude deixar de pensar, ora muito bem, eis o meu momento "olhai os lírios do campo"! Sorri e decidi aplicar esta máxima ao meu caso.
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