Lembro-me que era Primavera, embora talvez fosse qualquer outra estação do ano. Desci do autocarro e encaminhei-me para o edifício de pedra austera, elevando-se silencioso, como se mergulhado em luto eterno, no desnível da calçada, aí a uns três, quatro andares, ou mais ou menos, nunca fui de reparar nesse tipo de pormenores. Franqueei o átrio amplo, perguntei ao porteiro e segui as indicações. Subi umas escadas largas, de mármore (?), debruadas por um corrimão arredondado (?), encontrei-me com um corredor desafogado e depois era virar à esquerda, novo corredor, e encontraria a sala, também do lado esquerdo deste último corredor. Tudo muito liso, cinzento e sombrio, a condizer com o fato de racionalidade (e tédio e...) que levava vestido - por essa altura era o único fato com que cobria a minha frágil nudez.
Também por essa altura, já gostava de romances e filmes policiais, não me impressionavam as cenas macabras, nem o sangue a esguichar de vítimas estropiadas. A visão daqueles mundos de angústia, conflito e terror, filtrada pela lente das artes do imaginário, atraía-me sem resquício de perturbação. Talvez por isso, ia convencida de que enfrentaria a prova sem a vergonha das reacções (vómitos, desmaios...) anunciadas, nos corredores da Faculdade, pela voz divertida dos colegas mais velhos, os que já tinham passado por lá. Mas, devo confessar, não ia totalmente convencida. Um fio de inquietação suspendia-se algures, no recesso de dúvida e cautela que, ao confeccionar o meu fato de racionalidade, dissimulara como bolso de recurso, bem no interior.
Foi assim que segui em frente e virei à esquerda. No lado direito do corredor, sucediam-se amplas salas, cujas portas escancaradas expunham uma profusão de cadáveres estendidos (ou exibidos?) sobre marquesas, numa nudez indecorosa de abandono. Foi aí que o meu fato tecido de fios de racionalidade se esticou em rasgões súbitos e mudos, despenhando-se no chão gelado, enquanto a minha nudez desprotegida se confundia com a dos corpos desvalidos dos defuntos.
Retrocedi, impelida pela desorientação do choque, estaquei. Não, não podia desistir. Apanhei os trapos do meu fato e cobri-me com eles o melhor que pude, desapegando-me dos corpos mortos estendidos ali ao lado. Após uma pequena pausa, transpus a distância até à sala de destino.
O horror que me aguardava não era menor. Nem o choque. Nem o impulso de correr dali. O fato ameaçou, novamente, ceder, mas mantive-me firme. Já ali estavam vários colegas. Diziam-se graças, para fingir uma normalidade suportável. Dispusemos-nos à volta da mesa, enquanto o médico e o assistente se preparavam para começar. Coloquei-me na primeira fila. Talvez porque aí seria forçada a segurar o meu fatinho de racionalidade, talvez para me desafiar, sei lá. E vi tudo, sem desviar os olhos, como se precisasse de me demonstrar alguma coisa, talvez uma força que não tinha (e outra que tinha, mas não era equivalente...).
O cadáver sobre a mesa era o de um velho, creio que cego, e, traçada entre o peito e a barriga, tinha uma larga estrada castanho-avermelhada, quase poderia confundir-se com terra batida, rasto do comboio que o trucidara. Depois foi a dança das serras e bisturis, extracção e pesagem de vísceras e tudo o resto que envolve uma autópsia, a primeira autópsia a que assisti, numa aula prática (se foi!!!) da cadeira de Medicina Legal, como jovem aluna do curso de Direito.
Tudo aquilo deu-me muito que pensar sobre a condição humana, mas já não sei que pensamentos (embora não seja difícil de imaginar). Deu-me também uma enorme repulsa por ovos mexidos e omeletas, dada a sua semelhança visual com a gordura que se alberga sob a nossa pele. E provocou-me, ao longo de plúrimos anos, terríveis pesadelos, em que me apareciam talhos de cujos ganchos pendiam corpos humanos e não de (outros) animais.
(Imagem obtida em pesquisa Google) |
Que belo texto, sobretudo porque o tema não tem nada de agradável!
ResponderEliminarMuito obrigada, caro José Couto Nogueira.
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