(Nota prévia: o que segue fará parte, com as devidas adaptações, do projecto A Não História de Vladimir Blue, que nasceu neste espaço, em 13/05/2014, e, após alguns posts, continuou fora dele, com o ritmo ditado pela preguiça da autora...)
…
Desceu as escadas do duplex, quase em voo picado, ao mesmo tempo que gritava, já vou, já vou, parem de espremer a campainha. Mas a campainha não se calou enquanto não abriu a porta, assarapantado, o cabelo colado à testa, devido ao suor do pesadelo, e a mão agarrada ao peito, não fosse o coração escapulir-se, de tão acelerado batimento.
Deparou-se com dois homens, um dos quais, com ar sisudo e agressivo, rosnou:
- Polícia de Investigação Criminal, Coordenador Marques, Abílio Marques - aquela maneira de se fazer passar pelo James Bond de serviço, prosseguindo - e Inspector Neves. O senhor é?
- Vladimir Blue. Posso saber o que desejam?
- Ora bem, o que nós desejamos mesmo, para começo de conversa, é saber onde o senhor estava ontem, entre as duas e as quatro da tarde. Mas vai responder-nos na sede. Esperamos aqui enquanto se vai vestir.
- Vestir?!
- Sim, a menos que queira vir assim, em pijama. É isso?
- Ah, ok, é que acabei de me levantar e vim por aí abaixo abrir a porta, mas posso dizer já onde estive, lembro-me perfeitamente, não preciso de ir à esquadra para isso, e...
- Não é esquadra, é sede da Polícia de Investigação Criminal...
- Ou isso. Mas, afinal, qual a razão da sua pergunta, será que posso saber?
- Vai saber tudo o que há para saber no momento e no lugar certos, agora é só acompanhar-nos.
Algo hesitante, Vladimir Blue retrocedeu, deixando a porta entreaberta, o que eles consideraram um convite para entrar, metendo os pés no átrio e cruzando os braços, como se tivessem combinado, em desafiadora atitude de espera.
Subiu as escadas, duas a duas, e, ainda mais rapidamente, pensou, já me relacionaram com ela, como poderá ter sido?, estou certo de não ter deixado vestígios, aliás, nem pegadas, aquele vento maluco tê-las-ia desfeito, com toda a certeza. Só se fui seguido para a duna, mas não me lembro de ter visto ninguém e, quando me vim embora, fartei-me de olhar para trás, à procura de mirones. Bem, a verdade é que toda a gente sabia que namorávamos, devem lá ter chegado por essa via. Nada do outro mundo. Basta-me acompanhá-los sem levantar ondas e responder às perguntas. Bem vistas as coisas, não tenho nada a confessar ou a temer.
A escuridão apavorada da noite cedera lugar à clareza da lógica, aleluia!, possuía um belo raciocínio matemático, esteio seguro para os trambolhões a que a emoção, não raras vezes, o expunha.
Já mais calmo, o batimento cardíaco serenado, dirigiu-se à casa de banho, passou a cara por abundante água fria, esfregou-a energicamente com a toalha felpuda, lamentou as olheiras descaídas quase até aos cantos da boca, o que poderia não dar muito bom aspecto, mas, enfim, sempre seria menos mau do que quando os atendeu à porta, vestiu um dos seus fatos de marca, sobre uma camisa com monograma e uma gravata casual, e desceu, enviesando um desvio em direcção à cozinha. Precisava desesperadamente dum café.
Quando o cheiro forte e convidativo se espalhou pela casa, o Neves (simplesmente Neves, pensou) disse, em voz tonitruante, a destoar do seu ar enfezado:
- Ó Vladimir, não temos cá tempo para cafés, acompanhe-nos e é já, que se faz tarde.
Estremeceu, a chávena oscilou-lhe na mão sobressaltada e um respingo manchou-lhe as calças imaculadas. Aquelas manchas lembraram-lhe o sangue que vira escorrer do pescoço fino e acetinado de Akemi, os olhos toldaram-se-lhe numa névoa feita de água reprimida. Recompôs-se, sem perda de tempo, pousou a chávena no balcão da cozinha, olhou a máquina, já se tinha desligado, era automática, o último modelo da Nespresso. Fazia-lhe mesmo falta, aquele café abortado.
Quando se dirigiu à porta, já os dois polícias se encaminhavam para ele, caras de poucos amigos, olhares espantados no luxo liso do apartamento, nada de bugigangas, só grandes janelas, de alto a baixo, um sofá tão liso quanto branco, uma mesa de vidro, um enorme quadro quase a ocultar uma das paredes, cinzento, em várias gradações de cor e textura.
- O que é aquilo - perguntou o Marques, Abílio Marques.
- Aquilo?
- Sim, aquela tábua cinzenta pendurada na parede.
- Ah! é um quadro, intitula-se, Um Pouco de Nada. Gosta?
- E pagou por isso?
- E pagou por isso?
- Sim, claro, não foi oferta, mas, por acaso, tenho um mais pequeno, todo em tons de azul, também do mesmo pintor, oferecido pela minha namorada.
- E quem é a sua namorada?
- Como assim? O que é que isso interessa?
- Responda, limite-se a responder.
- Ok, não é segredo nenhum, a minha namorada é minha colega na Universidade e chama-se Akemi.
- Chama-se ou chamava-se?
As pernas tremeram-lhe, uma fuligem rosada cobriu-lhe o rosto. Disse:
- Como assim?
- Ora, a sua namorada, essa Akemi, está morta, não é verdade?
- O quê, o que está para aí a dizer? Como, está morta?
- Olhe isso é o que lhe viemos perguntar, como a matou, aliás, com o quê, como, até já sabemos.
- O senhor tem a noção da monstruosidade do que está para aí a dizer, dessa acusação sem sentido?
- Então vamos começar pelo princípio, ou seja, onde esteve ontem entre as duas e as quatro da tarde? Mas vai responder na sede. Toca a mexer, que já se faz tarde. Olhe e não se esqueça de trazer o telemóvel.
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