estava para ali um coração com escritos, arrenda-se! papelinhos brancos esvoaçavam-lhe sobre o fundo vermelho, dum vermelho seco como areias marcianas. os papelinhos levantavam e baixavam, empurrados pela aragem desprendida das incessantes pulsações. ali - onde se encontrava - era um lugar-não-se-sabe-qual, digamos, um lugar qualquer ou qualquer um lugar, no sentido de não importar onde.
desfilaram vários rostos, alheados, como cães por vinha vindimada (no pressuposto de que os cães adoram uvas, está claro!). talvez só lhes interessasse comprar. talvez já estivessem (bem) servidos de corações alheios. talvez se bastassem por si próprios, habitassem os seus próprios corações. cheios de si ou vazios de si.
o coração com escritos (arrenda-se!) não procurava morada, limitava-se a propor morada. mediante o pagamento duma renda, está bom de ver, basta pensar na ideia de arrendamento. os escritos não concretizavam, mas teria sido suficiente perguntar-lhe e ele responderia, - quinhentos beijos por mês, mil abraços por semestre, etc. meros exemplos, afinal não se apresentou ninguém a indagar.
nenhum interessado em tomar o coração de arrendamento. em comprar, sim, em usar sem pagar, também, nem numa coisa nem noutra, igualmente. houve mesmo quem só quisesse entrar e desarrumar.
o coração desprendeu os escritos. papelinhos brancos, manchados de vermelho seco, desataram a voar por aí, pelas alturas, completamente à toa. pareciam farripas de flores ao vento, prestes a desaparecer numa vastidão de silêncio.
o coração, saído do mercado de arrendamento, fechou as portas. não usou estrondo. compreende-se, também não chegara a colocar anúncio, apenas os escritos.
alguém bateu, truz-truz, coração, truz-truz, coração, truz-truz, coração. três vezes, quem sabe se um clone do sheldon cooper, aquele da série the big bang theory. perguntou, numa vozinha esganiçada (devia ser mesmo o shelly), - arrenda-se?
o coração não abriu a porta, espreitou pela janela sem se deixar ver, resguardado na espessura da cortina. observou, pensou, voltou para dentro, disse para com os seus botões (há corações assim, com botões), - não, agora não, definitivamente, não.
e aquele som, elevado ao desespero, truz-truz, coração, truz-truz, coração, truz-truz, coração, três vezes, exactamente três vezes, sempre três vezes, até ao infinito...
e os escritos a voar, prestes a desaparecer na voragem do incomensurável nada.
e o coração a esquecer, a recolher-se, a ficar cada vez mais pequeno, mais mínimo, até atingir o ponto zero dos corações.
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