Era um botão cinzento escuro, de aspecto pesado, com quatro buracos no meio. Podia bem passar por um homem maduro, largo de ombros, com algum excesso de peso, enfiado num fato de bom corte e com óculos redondos, sobreponde-se a um par de olhos um tanto arregalados. O Senhor C.
Era um botão preto, baço no centro, onde espreitavam dois buracos, e brilhante no rebordo. Pela cor e pelo aparato - aquele contraste brilho/baço -, passava bem por um padre. Não era difícil idealizar a batida esvoaçante, acompanhando o andar acelerado de quem tem de acudir aos necessitados da paróquia e, ao mesmo tempo, angariar, insistentemente, fundos junto dos poderosos. O Padre P.
O Padre P entrou na igreja, vindo não se sabe donde, e, após um esboço de genuflexão frente ao altar-mor, dirigiu-se ao casinhoto lateral, sentou-se, ajeitou aquela confusão de roupas, saia sobre calças, recostou-se o mais comodamente que conseguiu, afastou a cortina de tecido adamascado vermelho escuro, tipo sangue seco, e espreitou pelos buraquinhos da divisória de madeira fina. Não viu ninguém. Suspirou, matutando no alheamento dos paroquianos.
Interrompeu-o o chiar das dobradiças da porta da igreja, seguido do ecoar duns passos firmes e pesados, que conduziram um botão entroncado e arquejante até ao seu casinhoto.
Esperou que o botão se acomodasse, no seu fato cinzento escuro de fazenda cara. Sentiu-lhe o bafo, quente, mas de hálito indefinido, quando ele, o Sr. C, dobrado sobre os joelhos, encostou a cabeça à divisória onde pequenos orifícios desenhavam uma filigrana indefinível. Ao fim dum tempo considerado razoável, vendo que o outro não tomava a iniciativa, disse, num tom suave e convidativo, - Então, meu filho, o que te traz por cá?
O Sr. C agitou-se, num desassossego comprometido, sem conseguir expulsar da boca seca uma palavra sequer. O botão preto exortou, com um timbre de impaciência na voz,
- Vamos lá, meu filho, diz lá o que te trouxe aqui, que o tempo urge, em menos de nada há missa, e tenho de me despachar.
A resposta surgiu, de rajada, - Padre, eu pequei!
- Ora, isso não é novidade, por que outra razão estarias aqui? E, afinal, não pecamos todos? Preciso é que me digas qual foi o teu pecado e se estás arrependido.
- Ó, foi grave, tão grave que tenho receio de o confessar, e, para ser sincero, não estou arrependido, se é que isso serviria para alguma coisa...
- É claro que serve, é, mesmo, requisito essencial para seres perdoado, o arrependimento e, claro, a penitência. Mas, antes de mais, precisas de me dizer o que fizeste de tão mau. Sabes, por certo, que o que aqui disseres aqui permanecerá, ao abrigo da mais estrita das confidencialidades.
Talvez reassegurado pelas palavras do padre, sobretudo as alusivas à confidencialidade, o Sr. C respirou fundo, como quem se prepara para alijar uma carga pesada, e disse, - No princípio...
Havia um botão castanho, dum castanho esmaecido, que não chegava a ser cor de café com leite, com uns arrebiques no rebordo e umas estrias, aqui e ali, devidas ao excesso de uso. Podia bem passar por uma senhora de meia idade, sem profissão, encarregada da canseira da casa e da família, vivendo na sombra dum marido cinzentão, com uma profissão bem remunerada mas pouco entusiasmante, que voltava a casa macambúzio, exigindo as refeições a horas e a mulher à disposição para lhe satisfazer os apetites sexuais, não que fossem muitos ou muito frequentes e não que se empenhasse minimamente em os tornar agradáveis. A Sr.ª C. Por coincidência casada com o Sr. C.
O casal C, está bom de ver, vivia emaranhado numa rotina entediante, mas nem parava para pensar que a vida podia ser outra coisa. Até que.
Havia um botão vermelho, dum vermelho vibrante, com reflexos dourados e, talvez por isso, um ar provocador. Bem podia encarnar uma mulher da vida, bamboleante na sua roupa justa, com as pernas à mostra mais do que a decência impunha, e uns lábios grossos e suculentos, entreabertos sobre dentes ligeiramente desviados. Só podia ser a rapariga da esquina, a Menina P.
- No princípio - continuou o Sr. C - limitei-me a olhar, mas fiquei logo perturbado. Ali estava ela, enrolada num vestido vermelho vivo, cheio de brilhos dourados, que mal lhe tapava as coxas, e com um sorriso descarado a explodir dos lábios rechonchudos, por entre os quais deixava espreitar uma ponta de língua muito cor de rosa e húmida. Parecia que me convidava e desconvidava ao mesmo tempo. Já tinha escurecido, eu dirigia-me a casa após mais um dia de trabalho árduo - sou gerente duma loja de automóveis, ganho bem, mas sai-me do pêlo - e, admito, aquela visão perturbou-me. Senti-me desafiado, veio-me à ideia a figura doméstica da minha mulher, a esperar-me à porta como uma imposição, ali especada, sem outra ambição que não a de satisfazer necessidades alheias, minhas e dos filhos. Deu-me raiva a sua passividade e, sobretudo, a sua falta de brilho...
Estúpida que fui, trocar uma carreira de gestora, que, por acaso, se anunciava de êxito, por esta pasmaceira que é a casa, esperar pelo mastronço do meu marido, cada vez mais previsível e igual a si próprio, sem sombra de imaginação ou interesse em mim! Os filhos, esses, nem se fala, muito queridos em pequeninos, a fazerem-me dar por bem empregue o abandono da profissão, depois, cheios de embirrações adolescentes, e, finalmente, em fuga ou em vias disso, que querem casas próprias, carros próprios, vidas próprias, e eu, eu para aqui, neste abandono de doméstica, ao serviço desta cambada. Que estúpida fui! E agora é tarde, definitivamente tarde!
Que grande palerma, mais um que já apanhei e nem deu por isso. Coitado!
- Estou a ouvir-te, meu filho, podes continuar - disse o padre, já inquieto por adivinhar longa a confissão.
- No dia seguinte, lá estava ela, na mesma esquina, ainda mais provocante. Hesitei, não sabia como abordá-la, não estava habituado a transgredir, quero dizer, a sair da rotina. Como se tivesse adivinhado, ela dirigiu-se a mim, perguntou-me se tinha lume, estendendo um cigarro, como quem diz, vem cá. Tartamudeei, respondi-lhe que não, - não fumo, menina, - P, disse ela, e eu, - não fumo, menina P. Devia estar um bocado apalermado, porque ela riu, exibindo toda a sensualidade dos lábios grossos e suculentos, como se tivesse acabado de se lambuzar em mel. Palavra puxa palavra, acabei num apartamento manhoso, não longe dali, com ela colada a mim, a enfiar-me a língua pelas goelas, a desapertar tudo quanto era botão e a correr o único fecho éclair das minhas peças de roupa. Aplicava-se com um vagar langoroso e sistemático que me deixava em ebulição, como já não sentia há muito e, de resto, nunca senti com a minha mulher. No entusiasmo crescente (e digo crescente em todos os sentidos) em que me encontrava, nem reparei na aproximação dele...
Havia um botão roxo, feio na cor e na grosseria do seu plástico barato, talvez proviesse da loja do chinês, parecia um proxeneta enfiado num fato garrido, piroso, com a ponta da unha do mindinho quase do tamanho do dedo. Podia bem ser o Sr. Prx.
- E depois? - impacientou-se o padre, já a olhar para o relógio e a clamar secretamente por mais originalidade.
- Senti um impacto na nuca, desabei sobre o sofá ali ao lado, virei-me como pude e vi-o, um sujeitinho nojento, cheio de gel no cabelo, enfiado num fato roxo de tecido e corte grosseiros, e com um bigode que lhe escorria, num riso diabólico - desculpe a alusão - pelos cantos da boca. Atordoado como estava, não consegui perceber o que ele dizia ao botão vermelho, quero dizer, à Menina P, mas bem vi que trocavam risos alarves, enquanto esvaziavam os bolsos do meu casaco e calças, que jaziam, espalhados pelo chão forrado de uma alcatifa velha e suja, manchada sabe-se lá de que fluidos. Em menos de nada, tinham-me limpado a carteira, com tudo o que tinha dentro, e o telemóvel. Exigiram-me os códigos, sob ameaça duma navalha de ponta e mola e da promessa de morte, caso os números fornecidos não fossem os correctos. Depois, saíram por entre gargalhadas cínicas, enquanto ela, desenhando um gesto obsceno com o dedo do meio da mão direita, não sei porque fui reparar neste pormenor, me dizia, - bye-bye, babe...
- Bem, parece-me que já tiveste parte da tua penitência, só não percebo como não estás arrependido! Espero que agora, que verbalizaste o teu pecado, já tenhas reconsiderado. Vai para casa, leva um bonito ramo de flores ou um perfume à tua mulher, reza um terço antes de dormires, e fica em paz. Agora vai, que o teu pecado está perdoado, obviamente na pressuposição do arrependimento e do cumprimento destas duas pequenas penitências.
- Mas, padre, ainda não cheguei à parte que queria confessar, isto é só o contexto, os factos que levaram ao verdadeiro pecado...
- Nesse caso, e desculpa-me interromper-te, mas tenho missa dentro de 5 minutos, considera a confissão suspensa, volta amanhã pelas 16H, e, entretanto, aproveita para reflectires no arrependimento, sem o qual não te valerá a pena voltares, que isto é um confessionário católico e não uma qualquer agência de desabafo ou espécie de reality show privado. Até amanhã.
Sem mais, levantaram-se ambos ao mesmo tempo. O botão cinzento, quer dizer, o Sr. C, dirigiu-se para a rua, cabisbaixo, enquanto o botão preto, quer dizer, o Padre P, se orientou para a sacristia, tropeçando na batina e quase caindo, na pressa de se preparar para a missa. Na igreja, por entre o sussurro de rezas murmuradas, espalhava-se meia dúzia de botões velhos e escuros, que bem podiam ser o grupo habitual das beatas resistentes.
(continua)
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