Um encontrão violento quase o atirou ao chão. Equilibrou-se a custo, na exata fronteira entre o passeio e a rua, por onde circulava um trânsito desabrido e barulhento. Elevou os olhos numa interrogação muda, como quem aguarda um pedido de desculpas, mas já o outro se afastava, gesticulando e falando alto para o telemóvel preso à cara, qual excrescência indecorosa.
Ainda mal se recompusera, já uma voz impaciente o instava a mexer-se, fazendo-o sentir-se um empecilho. Prosseguiu em passo mais rápido do que o usual, não por pressa, mas para evitar novas agressões.
Um quarteirão adiante, franqueou a porta dum café, encaminhou-se para uma mesa recuada, despiu o casacão cinzento, ajeitou-se na cadeira e pôs-se a observar, através da montra, a agitação muda que desfilava no exterior.
O passeio fazia-se estreito para a quantidade de pessoas que nele se cruzavam, todas movendo as lábios em conversas frenéticas, as mais das vezes tendo os telemóveis como únicos interlocutores.
Procurando não dar nas vistas, retirou do bolso do casacão cinzento um volume pequeno, aí do tamanho dum tablet, revestido de papel de embrulho. Aconchegou-o nas mãos plissadas das rugas duma vida longa e mergulhou nele os olhos cinzentos e gastos. Apressou-se a resguardá-lo, quando o empregado, rapaz novo, talvez nem vinte anos, vivaz, com o nome Jorge afixado na camisa, se aproximou. Pareceu-lhe surpreender nele um olhar estranho. Tentou dissimular a inquietação, repreendendo-se intimamente pela possível inépcia na proteção do tesouro ou, em alternativa, pela tendência paranóica, antes fosse este o caso. Não lhe passara despercebida a atenção dissimulada que Jorge costumava dedicar à sua entrada no café e a pressa com que se adiantava aos colegas para o atender. Não lhe alimentou a tentativa de entabular conversa, como tem passado?, há uns dias que não aparecia, está uma confusão lá fora, etc. Limitou-se a acenar a cabeça, numa cortesia seca - forma de ser descortês -, atalhando com o pedido habitual, chocolate quente e torrada. Jorge ainda disse, com este frio sabe mesmo bem um chocolate quente! Ele manteve-se impassível.
Enquanto comia a torrada com o vagar ditado pela fragilidade dentária e sorvia, em golos espaçados, a bebida doce e reconfortante, atravessou a montra, por cima dos bolos que a decoravam, reflectindo sobre o cenário exterior. Como é possível que, ano após ano, as pessoas entrem nesta espécie de loucura coletiva, enchendo ruas e lojas numa entrega desmesurada a um consumismo inútil e injustificado, em nome, dizem, do Natal? - interrogou-se. Caiu numa espiral de memórias, pairou nos tempos da infância, em como apreciava o ritual da oferta e em como os hábitos eram mais razoáveis e as escolhas mais criteriosas. Recuperou o momento em que, pelos seis anos, recebeu aquele presente. Ocorreu-lhe o nome, a autoria, o enredo, as imagens, o formato, o cheiro, sim, até o cheiro! Apertou o objeto que retirara do abrigo cinzento. Pensou num bunker, sim, aquele tipo de objetos tornara-se maldito pela percentagem dominante, como classificava os governantes e os que, com o seu voto acéfalo, lhes conferiam o poder.
Jorge personificou-se como se vindo do nada e perguntou-lhe se queria mais alguma coisa. Mal-humorado, disparou:
- Porquê, já vão fechar?
- Não, ainda não! - respondeu o rapaz, sem denotar aborrecimento.
Pediu a conta.
O empregado desanimou. Aspirava à existência duma linguagem especial, destinada a irmanar os amantes daquele tipo de objetos, de que, sendo criança, o pai lhe falara em segredo, mostrando-lhe alguns, escondidos no sótão. Pena o desaparecimento misterioso do pai, pouco depois! A mãe nunca lhe revelou o esconderijo, se é que o conhecia. Mais tarde, por pesquisas na NvET - Núcleo virtual de Estupidificação Total, ficou a saber que, outrora, tinha havido locais destinados a guardar tais objetos e a receber pessoas que os quisessem ver ou deles dispor temporariamente. Mas essa informação, que só por erro dos gestores da NvET persistira nos respetivos ficheiros, foi retirada e ele expulso da USZ - Universidade do Saber Zero, por violação da regra da proibição da curiosidade. Por isso, em vez de engrossar as fileiras dos que compunham o frenesim lá de fora, estava ali a servir. Especialmente por isso, sentia-se tão curioso em relação ao velho de olhos cinzentos e tão desejoso de conversar com ele.
Escureceu, o halo dos candeeiros da rua fazia rodopiar os flocos de neve como se estrelas cadentes. O homem recolheu o objeto no bolso do casacão, deixou o dinheiro da conta em cima da mesa e saiu. Ficou satisfeito por Jorge não ter reaparecido. Na realidade, postara-se, discretamente, no passeio oposto.
Andou uns bons quarteirões, desceu ao metro, entrou na carruagem sobrelotada, saiu quando tinha de ser, e, por fim, denotando já algum cansaço, vertido na fundura das olheiras, atravessou uma rua e chegou a casa. Meteu a chave à porta, sem reparar que, colado a si, estava Jorge. Só no interior se apercebeu, instando-o, num sobressalto agressivo, a sair.
- Tenha calma, senhor, peço-lhe apenas que me ouça, depois vou-me embora - disse Jorge, sem sombra de violência, mas tirando-lhe as chaves da mão e fechando a porta.
O velho, dividido entre a impotência e a raiva, atirou-se para cima do sofá gasto, pelo menos tão gasto quanto ele, e anunciou:
- Enganaste-te no alvo, não possuo nada que valha a pena roubar!
- Não venho roubar, senhor, venho antes fazer-lhe uma oferta, um pedido e duas perguntas…
Perante a muda e espantada interrogação desenhada no rosto do velho, prosseguiu:
- Gostaria muito de saber o seu nome e o do seu tesouro, refiro-me ao embrulho que costuma trazer consigo.
Como o outro permanecesse mudo, adiantou, a medo:
- Estou a falar do livro e queria muito pedir-lhe que mo mostrasse. Compreendo o seu espanto, principalmente pela minha idade e pela forma como o abordei, mas, como sabe, não conviria ter esta conversa em público, para salvaguarda de ambos. Sabe, eu já tive um livro, aliás, mais do que um, nas mãos. Eram do meu pai, escondia-os no sótão e mostrava-mos em segredo, deixando-me folheá-los e lê-los. Depois desapareceu misteriosamente e nunca mais peguei ou sequer vi um livro. Até vislumbrar o seu, através do disfarce de papel de embrulho.
O velho, agora mais calmo, reparou verdadeiramente no rapaz, nos seus olhos cinzentos e na franqueza que deles emanava. Como quem exclui uma última dúvida, indagou:
- E que livros eram esses?
Sem revelar qualquer hesitação, Jorge citou vários títulos, mas deteve-se num, não podendo evitar um apontamento nostálgico:
- Lembro-me como se fosse hoje, ainda lhe vejo as imagens e lhe sinto o cheiro…
O velho interrompeu-o,
- E que querias oferecer-me?
- Pois - disse o rapaz, enquanto retirava um objeto que trazia escondido entre a camisa e o casaco -, é isto, uma capa de tablet, para substituir o papel de embrulho com que costuma envolver o seu livro, parece-me que assim será mais convincente e correrá menos riscos.
O velho só tinha mais uma pergunta:
- E que livro era esse de que te recordas tão bem?
O rapaz respondeu, sem hesitar. Apaziguado, o velho retirou do bolso do casacão cinzento o seu precioso livro e entregou-lho, dizendo:
- Toma, ofereço-to, agora vai embora e não te esqueças de usar essa capa de tablet, não vá alguém descobrir o que levas aí. Exibia um sorriso feliz. Depois, apagou os olhos.
O rapaz não insistiu em perguntar-lhe o nome.
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