domingo, 4 de fevereiro de 2018

ELEVADOR CIRCULAR: O MISTÉRIO


libertou-se do abraço da porta giratória com o ímpeto de quem não aguenta prisões. atravessou toda a largura do átrio num passo apressado, o excesso de espaço causava-lhe vertigens. premiu o botão, exibindo no rosto uma inquietação de horas de espera, apesar de o elevador nem quinze segundos ter demorado a aterrar.

a porta abriu-se, metade para cada lado, desenhando duas curvas perfeitas, e ele precipitou-se para o interior. a porta fechou-se com a mesma eficácia indiferente com que se abrira, enquanto ele estampava uma curiosidade desconfiada no círculo perfeito que o rodeava. nunca vira um elevador circular. as luzes, apesar de não muito intensas, multiplicavam-se por efeito dos espelhos que forravam o interior, todo o interior do veículo - sim, naquele momento, pensou no elevador como um veículo, mais exactamente, uma nave, não espacial, é certo, antes pelo contrário, intra-mural, mas, ainda assim, uma nave.

olhou para cima, para o tecto, como quem quer despistar um observador secreto e insistente. deparou com um par de olhos esbugalhados, um nariz perfurante e uma boca semi-aberta, de lábios finos, por onde se evadiam duas fileiras de dentes alvos e salientes. desviou o olhar daquele excerto de rosto sem o reconhecer. agitou-se numa apreensão que não passava de prolongamento da que o impelira até ali.

prosseguiu a busca, desta vez nos lados, melhor, naquela curva única do círculo perfeito desenhado pelas paredes do elevador. deparou-se com uma nuca lisa, revestida duma sombra de cabelo rapado à máquina zero. devia ter sido louro escuro, a avaliar pelo tom da mancha reflectida no espelho. descia-lhe um palmo de pescoço, logo escondido numa gola preta, assente nas costas direitas dum casaco que deslizava até deixar ver duas pernas de calças, também pretas, pousadas sobre os calcanhares duns sapatos de tipo inglês, pretos. os cotovelos espetavam-se para trás, deixando adivinhar um par de mãos resguardadas nos bolsos do casaco, melhor dizendo, do sobretudo. 

ao contrário do seu, aquele corpo não emitia sinais de tensão. estava ali, limitava-se a estar ali, como se uma paisagem colocada de propósito à sua frente para o desinquietar. um enigma, era o que era.

baixou a cabeça e a surpresa bateu-lhe nos olhos, o chão também era espelhado. e lá estava o outro corpo, reflectido ao contrário, os sapatos tipo inglês a descerem pelas pernas das calças, estas pelo longo sobretudo, este pelo palmo de pescoço à mostra e, finalmente, uma sobra de nuca manchada da falta do cabelo talvez louro escuro.

agitou-se num estremeção violento. disparou um olhar a toda a volta, uns perfeitos 360º. estendeu as mãos como um cego à procura de contacto, de orientação. foi-lhe devolvido o frio da superfície espelhada. apenas isso.   

mesmo assim, resolveu-se. começou por pigarrear, depois disse:

- bom dia! o senhor, por acaso, sabe dizer-me em que piso fica a sala do congresso de psiquiatria?

após breve hesitação, repetiu a pergunta. continuou sem resposta. todavia, o outro permanecia lá, no seu longo casaco preto, de boa fazenda, reparou.

a perturbação aguda duma dúvida insana atingiu-o com a força duma bofetada inesperada. estendeu um braço, como quem quer agarrar certezas. em vez da fazenda suave do sobretudo preto, sentiu a superfície fria do espelho. rodou sobre os calcanhares, um círculo perfeito, 360º. os braços estendidos a toda a volta. nenhum contacto, excepto com a parede de espelho. o corpo vestido de preto continuava lá, de costas para si, mas não conseguia tocar-lhe. só podia estar no interior do espelho, concluiu, espantado com a irracionalidade da conclusão. e ele, onde estava ele, que não se via reflectido? e porque não reparara nisso antes?

o tempo das indagações foi interrompido na exacta fracção de segundo em que o elevador parou e a porta se abriu de par em par, com um ruído metálico de rebentar qualquer par de tímpanos, por mais resistentes que fossem. com o coração a galope, deu um salto em frente, só porque tinha de sair dali.

estendeu uma mão desajeitada e furiosa para a mesa de cabeceira e pressionou o botão do despertador como quem esmaga uma mosca. soltou um palavrão, dois palavrões. levantou-se com um cansaço como se não dormisse há muitas eternidades. apressou-se no duche e no resto. 

ao cruzar a rua, sentiu frio na cabeça, era assim, desde que tinha rapado o cabelo à máquina zero. talvez devesse comprar um gorro. levantou a gola do sobretudo de fazenda preta. caminhou apressado, sobre os seus belos sapatos pretos de tipo inglês. franqueou a porta giratória do luxuoso hotel em que decorria o congresso de psiquiatria. dirigiu-se ao elevador.

surpreendeu-se com a agitação à volta, polícias, jornalistas... perguntou a uma mulher de ar tão espantado quanto o dele, sabe dizer-me o que se está a passar? não obteve resposta, ela nem sequer o olhou, aliás, comportou-se como se não o tivesse visto. mas, perguntada por uma outra pessoa, respondeu, ouvi dizer que desapareceu uma pessoa no interior do elevador!

afastou-se, confuso. inquietava-o uma interrogação: será que me tornei o homem invisível?



(Imagem obtida em pesquisa Google)






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