Aquela imagem não o abandonara nem um só dia, semana, mês ou ano, e tinham sido muitos, demasiados, aqueles dias, semanas, meses e anos, que finalmente deixava para trás (se tal era possível!).
De tanto a ouvir, lamuriada por uns, arremessada por outros, ladrada pelos mais agressivos - e não, nem eram os familiares, mas os advogados -, a acusação grudara-se-lhe à mente e para lá da mente, aos sentidos, para não falar das emoções. E agora ali estava ele, cumprindo a promessa, mais do que promessa, um desejo intenso ou talvez uma necessidade, algo do domínio do imperioso.
Vestia roupa simples e descuidada, no sítio de onde vinha não havia lugar a luxos ou a cuidados especiais. Mesmo assim, na noite anterior, procurou esticá-la o mais possível, ao menos que não ostentasse um ar amarrotado. Exceptuados os sapatos, nada pertencia ao vestuário com que ali entrara, nem podia. Entre esse momento e este tinham decorrido vinte longos anos, em que muita coisa, quase tudo, mudara. Só para falar no exterior, exibia cerca de trinta quilos a menos, a pele lavrara-se-lhe de sulcos, mais fundos na testa, talvez reflexo de uma fixação, daquela fixação. Quanto ao interior, seria melhor nem pensar nas diferenças, tantas e tão medonhas se configuravam. Isto, se acreditarmos que o interior pode mudar assim tanto, tema que não vem ao caso. Nem isso lhe interessava, já passara as várias fases, desde a mágoa ao espanto até à resignação/determinação, passando pela raiva e a revolta, a ansiedade e a angústia.
Mas o dia chegou e lá estava ele, dando cumprimento à promessa, com a esperança secreta de encontrar respostas (ou a resposta), como se uma lápide de mármore enegrecida, em luta permanente contra manchas de musgo e humidade, com um nome, duas datas e um texto vulgar inscritos, pudesse ter o condão de lhe fornecer respostas!
Vinte e quatro anos antes, ei-la, aureolada pelo fulgor ruivo dos cabelos, ponto alto da sua atracção, que foi recíproca (ou talvez não). Cruzaram-se por acaso, ambos voltaram as cabeças, os números de telefone trocaram-se no ar como canções de pássaros estouvados, pouco depois os encontros, em menos de quase nada, a coabitação.
A princípio, o entusiasmo. Depois, o entusiasmo, da parte dele, o desprendimento, da parte dela. Tornou-se arisca, parecia ter vestido o verde frio dos olhos. Ele, cada vez mais mergulhado no negrume dos seus. Em breve, começou a chegar tarde, invocando trabalho e saídas com as amigas. “Trabalho, amigas, e então eu”?, ele e a sua queixa. Ela a rir e a deslizar para a provocação, “Ai o menino está carente, pobrezinho! Ou serão ciúmes?”, com o sublinhado de uma gargalhada. “Não me chames isso, nunca mais me chames isso!”, e os ciúmes a instalarem-se, a incharem como uma bola de berlim.
Um dia, a constatação. Observou-a de longe, não, aquilo não era trabalho, não eram amigas, era outro gajo. O reboliço, em casa, não desencadeou respostas, apenas fez baixar o som das gargalhadas dela. Ele não ria, deixara de rir o seu riso original e cristalino. Perguntou-lhe, “Afinal o que queres da vida, da nossa relação?”. Sem se dignar responder, ela bateu com a porta. Ele estilhaçou um copo na parede. Fitas de whisky a deslizar pelo branco pálido e sedoso. Quanto desperdício! Acabou por regressar e pedir desculpa. Ele não aceitou. Bateu com a porta do quarto, mandou um livro pelo ar. Aterrou no candeeiro da mesa de cabeceira. Ela ouviu o estilhaçar da lâmpada.
Passaram os dias e eles sem se falarem, ele a remoer, ela não se sabe bem.
Passaram mais dias e ela a chegar ao trabalho com um olho roxo, e a sair do trabalho acompanhada pelo outro, o gajo, o mesmo, no meio de uma gesticulação feroz. As portas do carro a baterem como se o seguro cobrisse todos os riscos. Ele bem viu e assim como viu, pensou, é agora, não posso suportar mais este calvário, esta degradação de corno, tenho de a confrontar. Naquela noite, chegou macia, quase submissa, agarrou-se-lhe numa espécie de choro contido, dava para ver que estava arrependida (ou amedrontada?). Ele afagou-lhe os cabelos, desistiu do contra-interrogatório e do ultimato que congeminara em dias sucessivos, sobretudo em noites sucessivas, admitiu para si próprio que também arcaria a sua quota de culpas. Fizeram amor e dormiram juntos pela primeira vez em muitos meses. Combinaram jantar num bar da praia, no dia seguinte. O tempo começava a florir. Ela continuava com um olho roxo, mas agora era o esquerdo e, na coxa do mesmo lado, esvaíam-se-lhe em roxo já a caminho de amarelo umas nódoas negras do tamanho de nozes. Faço as perguntas amanhã, pensou ele antes de adormecer.
O dia seguinte amanheceu sem ela e por qualquer razão ele estremeceu um arrepio, pensou, nunca mais.
Aproximou-se, segurou-lhe a cabeça com a tremura das mãos húmidas e frias, viu o cabo do punhal a sobressair-lhe das costelas frágeis. Retirou-o com a esperança cega de poder anular o movimento inverso. Só então reparou que segurava o melhor punhal da sua colecção. Deixou-se cair, o corpo fechado num soluço mudo.
A polícia encontrou-o assim, nem meia hora tinha decorrido. De nada lhe valeu negar! O vento levara as pegadas. O vulto perdera-se para lá das dunas.
Agora, ali estava ele, Artur Alves, frente à campa dela
JOANA ANTUNES
1970 - 1996
ETERNA SAUDADE, PAIS E IRMÃ
à espera de respostas, "quem, porquê?". Já desistira de perguntar, "porquê eu"?
O cemitério era igual a qualquer cemitério, um relvado a perder de vista, ondeando levemente, como se a ondulação fosse necessária para evitar a pasmaceira dos mortos, e, a espaços não simétricos mas não desordenados, lajes de basalto ou mármore, a assinalarem a libertação dos prisioneiros da vida, eterna prisão dos adiados.
(imagem obtida em pesquisa no Google) |
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