a casa da praia situava-se entre as dunas arqueadas e o mar, pelo meio um vasto areal liso, a estabelecer as devidas distâncias.
quando chegava, sempre entregue ao devaneio - aquela era justamente a casa do devaneio -, dirigia-se às janelas, abria as portadas de madeira vermelha de par em par, afastava as cortinas de renda branca que pendiam a meio das vidraças, deixando um rectângulo de longe a descoberto, e olhava o mar, que se desdobrava, gracioso ou agressivo, consoante os ventos, as marés ou lá o que fosse. gostava de pensar que era conforme ficasse contente ou zangado por voltar a vê-la, exercício de o imaginar como um amante inconstante e fugidio, daqueles que tanto nos amam como nos odeiam, tanto nos procuram como nos evitam. não se importava, com este não valia a pena preocupar-se, calmo ou bravio estava sempre lá, e ela amava-o mesmo sem retribuição, sem necessidade de retribuição. se ficava mais contente quando o mar se mostrava agradado? nem sempre. por vezes (talvez as mais das vezes), precisava daquela luta, de o ver altivo, revolto, até porque, nessas alturas, havia sempre a hipótese de ele acabar por vir lamber-lhe os pés.
sorriu um sorriso mordaz. aqueles pensamentos, que nunca chegava a saber se lhe pertenciam a ela ou à casa, deixavam-na de bom humor, um bom humor entre a perplexidade e o divertimento, havia ali uma margem de estranheza ou confusão que talvez não indiciasse nada de bom. ou nem por isso, vá-se lá saber!
naquela ocasião, o dia vestira-se de outono, não um outono de calendário, só por imposição ou fingimento, um outono verdadeiro. nuvens baças, pesadas de muita água engolida, desciam sobre o mar, confundindo-se com a sua prata escura e sem brilho lá na distância. ondas cada vez mais rápidas e orgulhosas elevavam-se e desfaziam-se, deixando pelo caminho reflexos de branco, era a espuma, só a espuma era branca, tudo o resto mergulhado em cinza. até as gaivotas, agitadas em curvas desgovernadas - ou assim pareciam -, revoluteando lá bem no alto. sobre a areia, levantada por um vento que soprava com um estertor de moribundo, nada se movia, nem objecto nem sobra de gente, apenas ela mesma, deslocada em miríades de invisíveis grãos, como quem desenha lantejoulas ou escamas de peixe.
ficou feliz, super feliz, com o cenário, era assim mesmo que mais gostava do tempo. numa espécie de contradição que talvez nem o fosse, sentiu-se simultaneamente empolgada e aconchegada. como era belo aquele tempo, como a elevava a não sabia que alturas de pensamento ou sonho, memória sabia lá de que aconchego morno, que nem por perdido deixava de a afagar!
o sorriso tinha-se transfigurado em deleite. tirou os olhos da paisagem e moveu o corpo para dentro, para a cozinha. preparou uma chávena de chá, levou-a para a sala, segurando-a bem apertada entre as mãos pálidas e esguias, como quem precisa de se aquecer. sentou-se na poltrona de couro velho, desgastado nas costuras, especialmente escolhido assim, porque não podia ser de outra maneira, não naquela casa. e era castanho escuro, mais claro nos pontos de desgaste.
agora, impunha-se inventar qualquer coisa para fazer. seria? não eram aqueles momentos, os momentos em que se refugiava na casa da praia, destinados à mera contemplação, a deixar correr o pensamento sem objectivo ou rumo certo, desligado de qualquer amarra? pois sim, devia ser isso.
no exacto momento em que levou a chávena aos lábios, sentiu um baque na porta. estava muito longe de receber visitas. deixou-se ficar, aninhou-se mais fundo no assento, levou novamente a chávena aos lábios e as pálpebras iniciaram um movimento descendente. mas, como se de um filme se tratasse, uma sombra fugidia invadiu o espaço à sua frente, as pálpebras recuaram e ela ainda conseguiu vislumbrar o resto de um vulto que acabava de se atravessar à frente da janela. contrariada, levantou-se, perscrutou o exterior através da transparência das vidraças, que pareciam estremecer ao sabor dos caprichos do vento. apurou os ouvidos, não percepcionou nada, excepto o embalo furioso das ondas, agora tão altas e bravias, o zunido da areia, tão irrequieta, assim levantada pelas mãos vigorosas do vento, e o sussurro do manto de chuva que começava a embater no telhado, som constante e ritmado. poderia haver sinfonia mais perfeita?, perguntou-se ela, sem necessidade de abrir a boca, vantagem de quem está só. ao mesmo tempo, sentiu um arrepio estranho. não era de frio, nem percebeu muito bem o que era, que nem sempre é fácil reconhecer o medo.
voltou ao aconchego da velha poltrona. ainda não se tinha aninhado quando lhe pareceu surpreender um barulho estranho, quer dizer, espúrio ao som do mar, do vento, da chuva. quanto às gaivotas, já se tinham calado ou deixado de ouvir, o que vai dar ao mesmo.
o chá estava morno. regressou à cozinha. no curto caminho percorrido, apercebeu-se, com acelerada surpresa, de que a porta da rua estava aberta, oscilando para cá e para lá, conforme as ordens do vento. no corredor, vislumbrou uma pegada que ignorava a que sapato pertencia, sabendo, contudo, que não era seu e era bem maior do que o seu.
agitou-se em todas as direcções, como quem pretende reagir de rajada ao que aí vem. não veio nada. estava certa, tanto quanto se pode ter certezas, de que, ao entrar em casa, fechara a porta. também não havia réstia de dúvida sobre a pegada não lhe pertencer. conclusão? a óbvia.
com o coração a bater num desalinho nada habitual - há muito conseguira dominar as variações cardíacas -, entrou cautelosamente na cozinha e, em vez da chávena do chá, segurou a primeira faca que alcançou, não que fosse grande faca, só uma daquelas que tanto dão para cortar pão como para descascar fruta. olhou em redor e nada, não encontrou ninguém. saiu da cozinha, pé ante pé, com a faca em riste e o coração quase a saltar-lhe dos dentes, e abriu, com brusquidão inesperada, a porta do quarto. nada, ninguém. espreitou para debaixo da cama e para dentro do armário. resultado idêntico. só faltava a casa de banho. a princípio, nada, ninguém, mas faltava afastar a cortina do duche. deixou-se tomar por uma paralisia brusca e até o coração lhe parou ou então saiu-lhe pela boca fora, despedaçou-se no chão, e nem se apercebeu.
de repente, todos os sons naturais serenaram ou então não, era o outro som a soar demasiado alto, de furar tímpanos impreparados ou desprevenidos. uma música de filme de terror, daquelas que parecem facas a riscar umas nas outras, tipo, a música do filme Psico, do Alfred Hitchcock, inundou a casa, inundou-a a ela, que continuava paralisada, no meio da casa de banho.
de repente, lembrou-se que, na preocupação de descobrir o intruso - sem dúvida se trataria de um intruso -, não tinha chegado a fechar a porta da rua.
a música prosseguia o seu concerto, cada vez mais alto, penetrando cada recanto da casa, cada recanto do cérebro dela. ocorreu-lhe aquela confusão inicial, ela, a casa, a casa, ela... quem sentiria o quê? e agora, seria a casa mera testemunha ou vítima da situação? que situação?
o genérico deslizou lentamente pelo écran da televisão até já não restar nenhum crédito a atribuir. nesse momento, nesse preciso momento, a música cessou. ou assim teria sucedido, caso houvesse televisão na casa da praia.
lá fora o dia continuava vestido de outono, com todos os sons da tempestade, mas já não era dia, era noite. escura.
(Imagem obtida em pesquisa Google) |
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