1 - APARÊNCIA
Chamo-me Esta Fotografia, Esta, nome próprio, Fotografia, apelido.
Alguém de entre vós, humanos, fez de mim a composição que sou, dito de outro modo, deu-me certa aparência e conteúdo. Não é de todo a mesma coisa, como bem sabeis.
Talvez possa falar-vos de mim, para além da imagem que se reflecte de mim.
Sei que não conseguis observar-vos de frente, não digo uns aos outros, mas a vós próprios, quero dizer, olhos nos olhos, directamente. Só através de espelhos, esses falsos profetas cheios de enganos e ilusões que vos impedem de penetrar fundo, bem dentro de vós, do que realmente sois. Estão repletos do ruído da distracção, os espelhos, daí os enganos e as ilusões e, por via deles, a negação da essência.
Receio que, talvez por isso, ao olhardes para mim, possais quedar-vos na simples aparência, essa razão de superfície.
Sei que no meu caso, assim à primeira vista, sou uma paisagem clássica de por do sol em mar aberto, um mar calmo e escuro, cortado pela linha do horizonte, que o separa e une a um céu (ainda) um pouco menos escuro, mas a caminho da escuridão total. Lá ao fundo, um pouco acima dessa linha, equilibrando-se num vestígio de nuvem clara, repousa o amarelo redondo do sol, filtrado por neblina breve, a do entardecer, até se diluir, em brilho intenso, numa estrada indelével que caminha sobre o dorso do mar, conduzindo à sobra de um barco.
Mas atenção, isto é apenas a minha aparência, a superfície da composição que alguém fez de mim, e posso dizer-vos que quem só vê isto em mim, vê bem pouco de mim.
Sei que há muitas composições como a que represento, mas - posso assegurar - nenhuma delas representa o que sou, isto é, o momento, o estado, de que resultei, porque sou única, a fusão instantânea entre o ínfimo momento em que o botão da câmara foi premido e o estado de alma de quem o premiu, plasmada em mim para a eternidade, a eternidade do meu tempo de duração.
E é disto que vos posso falar, de tudo isto, que é tanto e tão pouco. Faço-o porque vos quero conduzir para além da minha simples aparência.
2 - SUBSTÂNCIA
No princípio era o tempo da normalidade. Casaram-se e tiveram filhos, dois. Tudo corria bem ou, pelo menos, na forma do costume, expressão habitual em cartas de antigamente. Podia falar-se de um quadro clássico, como o que, ao primeiro e desprevenido olhar, é visível em mim. Digo isto para simplificar, porque, se formos a ver bem, não há clássicos na vida das pessoas, cada caso é um caso, e, por vezes, mais do que um caso, que as coisas nem sempre se apresentam lineares e o que parece hoje de uma maneira, amanhã já assumiu outros contornos, de deixar uma criatura com a cabeça à roda e as pernas às costas, por assim dizer e se é que me entendem.
Depois, os dias começaram a trazer surpresas indesejadas, ou era uma dor ou um cansaço, não qualquer dor ou cansaço, uma dor e um cansaço de arrelia especial, para além do tolerável. Seguiu-se a ida ao médico, não por vontade - já se sabe, ainda está para nascer quem sinta vontade de ir ao médico, mesmo os hipocondríacos -, mas por absoluta necessidade. Ou então foi mesmo por aqui que começou, não pelo anúncio de dores ou de cansaço para além do suportável, mas através de simples exames de rotina (malditos sejam ou benditos, depende do ponto de vista).
O certo é que ela estava sentada frente ao médico, com as dores ou o cansaço ou os resultados dos exames de rotina pendurados no corpo ou nas mãos e um olhar interrogativo, suspensa das palavras mágicas que se seguiriam, como se seguiram, fatais.
Ele era um médico de pura tradição anglo-saxónica e avançou logo, frio, sem lhe fugir os olhos, como apenas se podem enfrentar olhos alheios, “A senhora tem cancro”.
Ela desatou a escorrer suores frios e a equilibrar tonturas e a torcer as mãos e a pensar para dentro, eu bem sabia que estas dores e este cansaço não podiam ser normais ou quem me mandou fazer as malditas análises, e ele, sem ao menos lhe perguntar se precisava de um copo de água ou de uma mão confortadora, perguntou-lhe, na sua frieza anglo-saxónica, “Quer perguntar alguma coisa?”.
A vontade dela era responder, “Sim, quero perguntar se tem a certeza do que está a dizer, se não se enganou”, mas a coragem desacompanhou-a. Sem coragem nem convicção, porque bem no fundo de si própria bem sabia que era verdade, aliás, estava farta de saber, mesmo antes de ter ocupado a cadeira à frente daquele desbocado frígido. Engolindo uma lágrima, para não lhe dar trunfos - sim, também sabia ser anglo-saxónica, nem que fosse só em modo de faz-de-conta -, endireitou-se de encontro às costas da cadeira e disparou, “Quanto tempo?”. Ele mexeu-se num desconforto nada anglo-saxónico, como se a pergunta dela fosse um rematado disparate ou uma bala disparada contra si, e tateou, “Como assim, quanto tempo?”. Enquanto via os filhos a desfilar na sua frente, um de dez e o outro de catorze anos, e, atrás deles, como sombra de enquadramento, o marido, ela endireitou-se mais um pouco, chegou mesmo o corpo à frente, como se fizesse questão de ficar mais perto dele, e num arremedo de normalidade, como quem se informa sobre o tempo, esclareceu, “Ora, quanto tempo tenho de vida!”, ao que ele, talvez um pouco tocado por aquela garra, respondeu, procurando amainar a frieza, “Bem, as coisas não são bem assim, hoje em dia o cancro pode ser apenas uma doença crónica e não uma causa de morte necessária. Teremos de fazer mais exames e só de posse dos resultados estaremos em condições de avaliar a situação e determinar a estratégia de tratamento a utilizar”. Ainda ia dizer mais coisas, mas ela interrompeu-o, insistindo, “Mas quanto tempo?”. Só então ele pareceu ter tomado consciência de que ela merecia ser acalmada, já não digo acarinhada, esboçou um sorriso a que não estava habituado, e afirmou, “Como lhe disse, vamos ter de fazer mais exames para aferir a gravidade da situação e determinar a melhor estratégia de cura”. “Cura, mas afinal tem cura?”, aventurou-se ela. “Pode ter, é prematuro antecipar conclusões ou simples prognósticos”, respondeu ele, lacónico. Talvez cansado daquela guerra que não era sua, começou a traçar rabiscos impenetráveis numa folha de papel timbrado, que lhe estendeu, anunciando: “Agora, o mais depressa possível, vai fazer estes exames e, logo que tenha os resultados, vem falar comigo, para definirmos o modo de actuar”. E, sem mais cerimónias, levantou-se.
Ela desceu as escadas do hospital, quase a tropeçar, dirigiu-se à rua, e as palavras ditas martelavam-lhe a cabeça. Curiosamente, não as palavras “a senhora tem cancro”, mas as palavras “modo de actuar”. De “modo de actuar” evoluíram para modus operandi e isso transportou-a a uma sensação de dejá vu, memória de algum livro de estudo, experiência profissional, filme policial ou qualquer outra distracção.
Chegou a casa sem se lembrar como. Pendurou o casaco no cabide da entrada e pensou em fazer o jantar. Os rapazes já tinham chegado, estavam nos respectivos quartos, o pequeno a construir um lego, o outro a jogar playstation. Irritou-se com a desarrumação dos quartos, por mais que lhes dissesse, eram incapazes de arrumar as roupas como devia ser, quem diz as roupas, diz as mochilas, os sapatos, os brinquedos e etc. Deteve-se no quarto do mais novo, preparada para levantar a voz numa admoestação, mas, em vez disso, estreitou-o nos braços, num abraço muito apertado, um abraço a roçar o desespero, e disse, “Filho, meu filho”. Ao fim de um tempo, entre a surpresa e o incómodo, ele libertou-se e, olhos nos olhos, perguntou, “O que se passa, mãe?”. “Nada, só que te amo muito”. “Isso já eu sabia!”, respondeu ele, com um ar maroto. E riu-se, mas era um riso inseguro, a suspeitar desgraça.
O marido chegou mais tarde, beijou-a como de costume, indagou, “Então a consulta correu bem?”. Foi aí que ela parou para pedir colo ou apenas porque já não aguentava mais, tanto faz, deixou as lágrimas cair e os soluços falar mais alto do que a resposta que tinha para apresentar e esta era, “Tenho cancro, mas não sei mais nada de concreto, nem sequer quanto tempo me resta de vida”. E as dores e o cansaço atacaram forte, ou em vez disso, ela limitou-se a pensar, quase num grito, por que raio me havia de ter dado para ir fazer os malditos exames de rotina?.
O marido, ocultando como pôde a tremura das pernas, procurou animá-la, que iam vencer aquilo juntos, que, hoje em dia, o cancro já não era necessariamente mortal, que mortal era estar vivo - conseguiu brincar e ela conseguiu sorrir -, que não se atormentasse, que iriam consultar outro médico, os médicos que fosse necessário, e fariam tudo para sair daquela situação e dela iriam sair vencedores, nem podia ser de outra maneira.
De repente, a voz do mais velho, encostado à porta da cozinha, fez-se pergunta ansiosa, “O que se passa, pai?”. “Nada, filho, não é nada, não te preocupes, vai por a mesa, que nós já levamos o jantar”, “Mas eu ouvi…”, “Não ouviste nada, são coisas da tua mãe e minhas, só isso”.
Em vez de por a mesa, bateu a porta da rua e desapareceu na noite. E o estrondo foi de tal ordem que o mais novo apareceu, esbaforido, a querer saber, “O que foi?”, e só então reparou na palidez do pai e na cara afogada em lágrimas da mãe, afligiu-se e repetiu, em agonia, “O que foi?”, e pensou que o pai tinha sido despedido, porque vinha ouvindo ruídos de que o país estava em crise, muitos despedimentos e insolvências, e andava inquieto. O pai apressou-se a sossegá-lo, “Não te preocupes, filho” e logo a mãe, “Sossega, filho, não é nada, sou só eu que estou um pouco doente, mas vou ficar melhor, prometo”. “Doente como?”, inquietou-se o miúdo. “Ora, filho, não é nada de especial, as pessoas adoecem e depois curam-se e é isso mesmo que vai suceder comigo, juro”. E ele, o miúdo, rodeou-lhe o corpo com os braços finos, de criança, e desapareceu, sabe-se lá para onde, talvez para onde pudesse ir pensar na vida sozinho, será que a mãe vai morrer? E eles deixaram-no ir, porque não tinham nada melhor para lhe dizer e estreitaram-se nos braços um do outro.
O pai foi encontrar o mais velho a uns quarteirões de casa. Tinha os olhos vermelhos e dava pontapés violentos a tudo o que se lhe atravessava no caminho. “Anda, vamos para casa, filho” e rodeou-lhe os ombros. E foram e, no caminho, explicou-lhe - afinal já tinha catorze anos -, com palavras cautelosas e brandas - afinal ainda só tinha catorze anos -, o que se estava a passar. Depois, em resposta às perguntas difíceis, discursou sobre a esperança, aquela que havia de, forçosamente, “matar a fera”, disse.
Depois seguiu-se, verdadeiramente, o calvário. Primeiro a intervenção cirúrgica, depois a quimioterapia, os enjoos, a fraqueza, os cabelos a entregarem-se-lhe nas mãos como quem se rende e desiste de lutar por aquele corpo exaurido, depois a radioterapia, o corpo a arder como que para provar que está vivo. E aquela angústia permanente, a finitude anunciada em concreto, a dor funda, o sentimento de perda, de falta, o desgosto, já não tanto por si - que talvez fosse mais fácil desistir -, mas por eles, os seus meninos, o mais pequeno tão indefeso e confuso, o mais velho tão indefeso e confuso e revoltado, ambos tão órfãos, assim os vê, assim os imagina, assim os lamenta, assim se lamenta. E o marido, o companheiro incansável das horas boas e das horas más. Já não é por si, mas por eles. E então um pensamento involuntário - se é que há pensamentos involuntários, mas isso não vem ao caso - cruzou-lhe a cabeça, quando morrer, já nada sentirei, nada verei. E censurou-se, achou este pensamento perverso, egoísta, e pensou que não podia morrer, proibiu-se de morrer e decidiu lutar, prosseguir a luta, com força redobrada.
E ESSA É A ESCURIDÃO QUE TU VÊS NO MEU MAR A ANOITECER
Passou muito tempo, podia ter sido apenas um dia, um mês, um ano, que seria sempre demasiado tempo, mas foi mais do que isso. Foram dois, três, talvez mais anos, não que isso interesse muito, porque bastava que tivesse sido apenas um ano, um mês ou até um simples dia que iria dar ao mesmo, aquele machado pendente sobre a cabeça, sentença mortífera sem causa acusatória.
Mas a luta continuou e, como nem toda a luta que continua, estava a dar os seus frutos, o mal parecia ter sido contido, eliminado, pelo menos já não havia necessidade de mais tratamentos, o cabelo reconciliara-se com o corpo, até irrompera mais forte, as sobrancelhas reapareceram, os resultados dos exames mostraram-se esperançadores.
Ela manteve a atitude de guerreira, o sorriso voltou a alegrar os seus olhos. Ah!, se pudesse olhar agora os seus olhos, olhos nos olhos, directamente, sem espelhos de premeio, quantas revelações encontraria!, mas podia olhar bem fundo o olhar do marido, e isso reforçou o seu sorriso e adoçou-o.
As crianças já andavam como que esquecidas do que foi, “como que”, sublinho, pois esquecimento definitivo é coisa que não existe, nem nestas nem noutras lides, tudo é lastro que nos compõe ou descompõe, apesar da memória e, paradoxalmente, por via dela.
E uma esperança sustentada deitou as garras de fora, qual flor de primavera estendendo pétalas ao vento. E ouviram-se os primeiros risos ao fim de muito tempo. E o médico - afinal era um óptimo médico - até já conseguia recebê-la com um sorriso aberto e congratulá-la, que “conseguiu, é uma lutadora, parabéns”, e ela, “obrigada, senhor doutor”, e o marido, que passou a acompanhá-la às consultas, exultava de contentamento descarado.
Mas ainda dominava um fundo de medo, a fera mordera forte, lançara o feitiço da finitude em modo concreto, ainda estremecia ao pensar na próxima revisão.
E aproximava-se a data, aquela data com que sonhou tantas vezes, e agora ainda mais, porque era cada vez mais merecido festejá-la. Ainda estava tudo muito fresco, sabia que as revisões nunca se podem dar por terminadas, mas aí, encheu-se de coragem - que, aliás, já demonstrara ser a sua marca -, manteve bem alta a bandeira da esperança que teve forçosamente de inventar ao longo deste tempo tão longo de agonia, e decidiu, Vou, vamos. Faça-se a festa, afastem-se os fantasmas, que se dane a fera, enterre-se a fera. E ele, o marido, não esperava outra coisa.
Trataram dos bilhetes, das malas, e partiram. Partiram para alto mar, que calhou ser o mediterrâneo. Foram fazer a festa, que afinal não é todos os anos que se festejam as bodas de prata, nem é todos os dias que se festejam outras vitórias bem mais radicais. E a esperança, embora trémula, venceu. E valeu a pena.
E ela aproximou-se da popa do barco e premiu o botão da câmara fotográfica. Assim nasci.
E ESSA É A CINTILAÇÃO QUE TU VÊS NA MINHA ESTRADA DE LUZ SOLAR REFLECTIDA NO DORSO DO MAR
3 - ENTENDIMENTO
Apresso-me a concluir: não se limitem a ver em mim um simples por do sol no mar!
Embora me aventure a pensar que não foi assim que me viste pela primeira vez, antes de te ter contado a minha história; quase me atrevo a apostar que a razão por que te afastaste de mim foi porque o teu olhar me captou a escuridão, apenas a escuridão, quem sabe se lá bem no fundo não sentiste a camada subterrânea de angústia que me integra! E por isso fugiste de mim. Afinal, não são vocês, os humanos, pedaços uns dos outros, ecos repartidos do espírito universal? Depois, mas só depois de me teres levado a revelar-me, incompreendida que me senti, conseguiste alijar o peso da angústia, surpreender e celebrar a força e a esperança e regozijar-te com a vitória. E sentiste-te grata e, sobretudo, mais rica. E concluíste que com as fotografias é como com as pessoas, nem sempre a primeira impressão é a que acaba por contar, digam o que disserem.
E ESTA É A PARTE EM QUE PENSASTE QUE TALVEZ EU SEJA UM AMANHECER E NÃO UM POR DO SOL
(Fotografia de Manuela Moringa) |
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