sexta-feira, 12 de julho de 2019

ALGUÉM DISSE F***- SE?



Chego quase às 16H. Uma aragem fresca corta agradavelmente a elevada temperatura. Nem parece que acabei de sair de um forno, Lisboa, ontem. Pago a cadeira e o guarda-sol, dispo o vestido, estico a toalha e estico-me sobre ela, disposta a gozar do que resta (e ainda é muito) duma bela tarde de praia. O mar espraia-se lá longe, em cintilações distantes, como quem quer partir. Sei que não é o caso e isso conforta-me. Amo o mar. E o céu azul, lá em cima, onde se espraiam os meus olhos, em cintilações admirativas e gratas. Que boa aragem, diz o meu corpo, a preparar-se para descontrair, entregar-se, dormir. Adoro dormir na praia. Por vezes, acordo com um leve estremeção, olho em redor. Tudo calmo.

Não é o caso, agora. Os meus ouvidos distraem-se do murmúrio longínquo do mar — como é bom o murmúrio do mar e, já agora, o do vento, sobretudo se filtrado pela folhagem das árvores! A realidade exige-me, impõe-se-me. Um pouco a sul, passam as vozes de dois rapazes, a expulsar pela boca c******* e f**** - se. Um pouco mais tarde, sou forçada a reparar que não foram longe. Dirigiam-se ao grupo estacionado ali mesmo adiante, logo a seguir à corda que separa a zona de guarda-sóis da areia restante. São muitos, adolescentes, corpos morenos, já de muita praia, as raparigas de cabelos compridos, eles de calções pelo joelho ou quase. Como é próprio da idade, falam e riem alto, pelo meio cospem palavrões. Bebem cerveja, que tiram de garrafas grandes, da lancheira-frigorífico. Assaltam o homem das bolas-de-berlim. Um deles é o rapaz do dinheiro, não se apercebe que lhe vem daí a popularidade.

F***- se, penso, perante a ameaça de destruição da tarde de descanso. 

Talvez a noroeste — nem me viro para comprovar —, também alto e bom som, uma voz jovem de mulher profere aí uns três palavrões, numa frase de umas cinco palavras: m****, f***- se (sempre o f***- se a marcar presença, como se vivêssemos dentro dum filme americano) e outro qualquer, já nem sei qual e não vale a pena inventar.

Vejo a minha vida, quer dizer, a tarde ou as expectativas criadas a respeito, a andar para trás. Lá se vai o descanso e, sobretudo, o sono. Faço um esforço por abstrair, mas é impossível.

F***- se, F***- se, F***- se, exaspero-me.

Olho para o lado de lá e vislumbro uma cadeira a vagar. Levanto-me, arrasto a tralha — toalha, saco leve e chinelas, não é grande coisa, ando na tentativa de reduzir a vida ao mínimo de tralhas e ao máximo de conforto — e instalo-me longe da multidão. Por assim dizer, que a praia está cheia de gente, mas, aparentemente, aqui não há grupos barulhentos ao alcance das pontas dos dedos dos pés. Bem, uma mãe segura um filho ao colo, o miúdo dá uns guinchos estranhos, começo a sentir-me incomodada. Tudo muda quando solta umas gargalhadas límpidas e coloridas. É tão belo e reconfortante o riso das crianças! Lembro-me do riso da Inês, quando criança. Penso: é o som mais belo que alguma vez ouvi! Agora tem dezasseis anos. Hei-de reparar em como são as suas gargalhadas, agora, embora não sejam iguais às desse tempo!

O sossego (relativo) começa a instalar-se.

Eis que chega a potente voz de uma mulher de meia idade. Dirige-se à amiga, deitada numa cadeira perto da minha, e interjecciona: «Eia, isso é que é descanso, aí a dormir!!!» Se fosse comigo, perdia a amizade nesse momento! Então vê que a amiga está a descansar e acorda-a daquela maneira?! A acordada é de bom feitio e recebe-a bem. Para mal dos meus pecados. Começam a falar alegremente, alto e bom som, a recém chegada. Atenção, só os meus ouvidos deram por tão tristes cenas. Os olhos e o resto procuram abstrair-se.

Descobri esta praia há cerca de dez anos. Era maravilhosamente quase deserta. De há uns anos para cá tem vindo a encher, a encher, e agora é isto. Não que tenha algo contra pessoas (embora, em geral, também não tenha grande coisa a favor). Também nada tenho contra palavrões, eu própria os uso, talvez com frequência superior à devida, mas, dentro do meu universo privado, sobretudo por razões estéticas. Valerá a pena dizer que, a dada altura em que a minha vida andava completamente f*****, não havia plano que se aproveitasse, fosse pessoal, profissional, familiar, social ou outro, ganhei o hábito de desabafar com recurso a palavrões. Uma espécie de rap da desgraça. Era assim: chegada a casa, fechada a porta, a cabeça completamente à mercê dos acontecimentos, expressava as frustrações e desatinos nuns valentes e desatinados, f***- segrandessíssimo f*****- da- p*** e outras pérolas do vernáculo, sobretudo a primeira. A coisa estava a assumir um tal carácter de habituação que resolvi parar, com receio de me deparar com algum f****- da - p*** — e deparei-me com muitos, podem crer —, numa reunião e, por força do hábito, deixar escapar um hipotético, vá à m****, f***- se, vá pró c****** ou vá levar… bem, creio que já deixei o meu ponto de vista bem explicado!

Dito isto, o que me incomoda não são os palavrões, em si, mas levar com eles fora de contexto, sem ter nada a ver com a conversa. E o que me incomoda ainda mais, mesmo, é ter de suportar conversas alheias. Não me interessam e o zum-zum impede-me de descontrair, descansar e dormir. E é (também) para isso que vou à praia e pago para ficar bem instalada!

Só para dizer, às duas amigas barulhentas (afinal, vim a constatar serem três) ainda vieram juntar-se dois maridos e dois filhos, estes, rapazinhos adolescentes bem comportados. Passaram o resto da tarde a contar histórias ou tangas. Já tendo desistido do almejado descanso, dignei-me ouvir esta: dado tipo, obviamente cognominado de palerma ou otário, levou de férias (assumindo a correspondente despesa) a mulher, a ex-mulher, o marido desta e os filhos que teve com ambas. E o amante da mulher. Não, esta última parte inventei.

Compreendem, agora, o meu desejo de vir a possuir uma praia privativa, ou, em alternativa, que os outros (mas todos, por favor!) possuam praias privativas, deixando a pública só para mim?

Isto para concluir que a praia de S. João (Costa da Caparica, Lisboa, Portugal) já não é o que era! 

F***- SE!







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