A menina era bela/ A menina era má. Parecia um anjo/ Comportava-se como um diabo.
Caracóis fartos e sedosos, dum louro quase branco, rodeavam-lhe a pele translúcida do rosto delicado, perfeito; olhos cor de mel/ Suas mãos finas deliciavam-se a torturar formigas e a submeter ao banho bonecas de papier maché.
Sabia que era bonita/ Saberia que era má?
Havia uma irmã: três anos de idade, menos quatro do que a menina, ainda mais bonita. E um irmão, igualmente lindo. Era meigo. Tinha nove anos.
A irmã morreu afogada, na piscina do jardim lá de casa.
A menina irrompeu em casa aparentando desnorte e gritou, «A mana, a mana». A empregada perguntou, «O que tem a mana». A menina continuou a exibir desnorte, naquela repetição gritada, «A mana, a mana».
Não ouviu o choro desesperado que vinha lá de cima, do quarto do irmão. Ninguém ouviu.
Sem perda de tempo, a empregada correu para o jardim e viu a menina mais nova a boiar, de cabeça para baixo, mergulhada na água cintilante da piscina. Conforme pôde, entrou na água, nunca antes entrara numa piscina, só no rio da aldeia e só para lavar roupa. Apanhou a criança, agitou-a nos braços grossos e maternais. Gritou com quantas forças tinha. A senhora, mãe das meninas e do menino, acorreu ao estardalhaço. Arrancou a filha dos braços da empregada. Deitou-a sobre a relva, parecia um anjo caído. Soprou-lhe na boca, massajou-lhe o peito. Tudo em vão. Desmaiou nos braços do marido, chegado entretanto.
A menina observou todas as manobras em silêncio, semioculta pelo tronco grosso duma árvore centenária. Um sorriso arrepanhava-lhe os lábios rosados e frementes.
O irmão continuava entregue a um choro desesperado, lá em cima, frente à janela do quarto, a ver tudo, sem se poder mexer. Tinha partido uma perna, em circunstâncias não muito claras. Por agora confinava-se a uma cadeira de rodas. Só o vidro da janela o separava do mundo, pelo menos, o mundo do jardim. Chorou até lhe secarem as lágrimas. Ninguém reparou nele, os adultos perdidos na morte da criança, a menina abandonada à observação.
Ainda bem que a menina não reparou no irmão...
Dispararam-se perguntas a todos, excepto ao menino, coitado do menino, confinado que estava à imobilidade da sua perna partida. A menina respondeu sempre com compostura: que estava a brincar com o cão, a correr pelo jardim, só deu conta quando se preparava para um mergulho. A empregada chorava e torcia o avental entre as mãos calejadas: que se tinha ausentado por breves momentos, para atender o telefone, que dissera à menina para não largar a bebé, que podia cair à água. A menina, com seu ar angélico e seus olhos-mel muito abertos numa coreografia de espanto, abanou a cabeça, desenhando uma negativa firme.
A empregada foi acusada de negligência e despedida.
Os pais nunca mais olharam para a menina da mesma maneira. O menino também não. Ficou triste, cada vez mais triste. Os pais, mergulhados no seu desgosto egoísta, esqueceram-se de olhar para o menino.
A menina cresceu sempre linda/ Sempre má.
Cresceu, tornou-se mulher. A mulher era doce/ A mulher era perversa.
Ou assim se presume...
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