terça-feira, 17 de março de 2020

#COVID-19 DESCOMPLICADO


Havia um morcego que, para mal dos seus pecados – e são muitos os pecados atribuídos aos morcegos, desde logo por associação aos vampiros, via Drácula e afins –, era habitado por um jovem descendente da família #Coronavírus, aliás, distinta família (nem doutro modo exibiria tal nome, derivado do uso de coroa).

Certa noite, enquanto descansava pendurado de cabeça para baixo, como é hábito dos seus, sentiu um desvairado apetite por sangue fresco de cobra. Saiu para caçar e, ao sobrevoar os arredores do mercado da cidade chinesa de #Wuhan, deparou com um belo espécime de saborosa – pensou ele, babando – réptil. Vai daí, em mergulho certeiro, desabou-lhe sobre o lombo e ferrou com gosto.

Ora, o jovem descendente da aristocrática família Coronavírus que habitava no morcego e que, tomado de indómita juventude, ansiava por desbravar novos mundos, o mesmo é dizer, novos hospedeiros, aproveitou a oportunidade sem perda de tempo e zás: no lapso de segundo decorrido entre o abrir e cerrar da boca do morcego sobre o dorso da cobra, libertou-se, entranhando-se nesta.

Mais tarde, a bicha rastejante sentiu uma impressão desagradável no lombo, que se apressou a atribuir à mordedura do malvado vampiro (como se lhe referiu mentalmente, não fosse ela versada no célebre romance Drácula, do Bram Stoker, e outros do género,  e não tivesse visto todas as versões cinematográficas do mesmo e afins). 

Pouco depois, achando-se apanhada à traição por um chinês, viu-se a caminho do referido mercado. Bem sabendo a sorte que a esperava, deixou de pensar na mordidela e, apesar de ciente da sua impotência, jurou vingança (pobrezinha, ao menos desabafou, o que já pode ser considerado uma forma de vingança, embora ineficaz, sendo certo que a ineficácia constitui a negação da vingança... Enfim, filosofar para quê?!)

Tal como previra, acabou rapidamente comprada por um chinês capitalista – ao menos isso, iguaria fina como era não se destinava à boca de qualquer um, pensou, tentando conformar-se – e, pouco tempo decorrido, após cozinhada numa panela escura, era servida em banquete.

O adquirente, deliciado que estava com o requintado petisco, mal reparou numa impressão estranha na garganta, que se lhe insinuou ao engolir uma das últimas garfadas (bem, isto era se eles usassem garfos!).

Por essa altura, estava muito longe de saber que o jovem dos Coronavírus – sempre ansioso por desvendar novos mundos, e, sobretudo, novas modalidades de alojamento local – se evadira do corpo da infeliz cobra e, antes de ser empurrado para os andares de baixo, de onde certamente seria expelido para um esgoto, se agarrou fortemente à sua garganta, fincando-se com força e destreza até ele acabar a saborosa deglutição.

Só depois começou a visitar as diversas cavidades e reentrâncias do hospedeiro, ficando-se pelas superiores, que as lá de baixo inspiravam-lhe um não sei quê de desconfiança e nojo.

Dias volvidos, andava a passear, muito divertido, deslizando das fossas nasais para os brônquios do homem, como se aquilo fosse um escorrega, quando este se levantou e, aí sim, sentiu um desagradável formigueiro nas vias respiratórias e desatou a tossir uma tosse seca e impertinente, acabando por acordar a mulher. "Ó homem, vai mas é ver a febre e deixa-me dormir!", vociferou ela (que muitos chineses têm por hábito expressar-se aos gritos ou, pelo menos, fazendo muito barulho). O desgraçado encolheu os ombros e, sem tempo para medir a febre, embora sentido-se já a escaldar, dirigiu-se à fábrica, onde, por parco salário e substancial lucro próprio, dispunha de um batalhão de operários concentrados na confecção de roupa para a Zara, a Tommy Hilfiger e outras que tal, das mais económicas às mais dispendiosas.

Os operários, habituados a ver o patrão exibir uma saúde de ferro, estranharam o seu ar murcho e doente. Alguns ousaram aproximar-se para, entre vénias respeitosas, indagarem se estava tudo bem e se precisava de alguma coisa.

Em breve deixaram de o ver, mas, por essa altura, já se preocupavam exclusivamente consigo próprios, porquanto, lá na fábrica, aquilo virara um pandemónio, só tosse, espirros e gafanhotos a pulverizar os ares, para não falar na febre e dores de corpo. O mesmo se passava com parte dos familiares e amigos de muitos deles. Até que começaram a registar-se mortes, sobretudo entre os mais velhos e desvalidos, atacados de severas infecções pulmonares.

Enquanto isso, o jovem dos Coronavírus não cabia em si de contente, saltando de hospedeiro em hospedeiro e devorando pulmões a um ritmo alucinante, num descarado regabofe.

Como é dos livros, acabou por ser detectado e identificado, com atribuição de nome, #Covid-19 – o que o deixou num periclitante estado de ambivalência, por um lado, orgulhoso do reconhecimento com identidade própria, por outro, preocupado pela antecipação da guerra que a nova espécie de hospedeiros lhe iria mover até ao extermínio ou neutralização final (apesar de jovem ínfimo, não lhe faltava conhecimento da vida). 

Ciente do perigo, o Covid-19 resolveu que o melhor era aproveitar à fartazana, ao menos enquanto fosse livre de actuar. Vai daí, decidiu diversificar o campo de acção: com grande frenesim, multiplicou a actividade e cruzou fronteiras como se não houvesse amanhã.

Chegados a este ponto, os humanos (já não apenas chineses) e, sobretudo, os mercados – entidade abstracta e misteriosa que comanda o mundo, incluído o mundo do primeiro chinês visitado (e lixado) pelo Covid-19, aliás, exemplo ímpar do milagre do primeiro estado conseguido de comunismo-capitalista – revelavam assinalável (e compreensível) desnorte.

Se os humanos envidaram esforços para resolver a questão? Obviamente! Mas o certo é que, à medida que o tempo decorria e o Covid-19 continuava imparável e triunfante na sua senda assassina,  não surgia nada capaz de o deter, nem medicação específica nem vacina – há que ver que os ritmos da ciência são, naturalmente, outros. Em desespero, optou-se por lhe travar a propagação, mediante a adopção de medidas de distanciamento social.

Não vou prosseguir com o relato das patifarias do malvado – que infelizmente, a esta data, continuam sem solução à vista –, para isso já basta de telejornais e de redes sociais, notícias e teorias da conspiração, etc. 

Fixo-me, apenas, no elenco de algumas das primeiras vítimas ocorridas no nosso país:

Proverbial optimismo do primeiro-ministro António Costadando mostras de uma cautela (nele) inusitada, começou logo – honra lhe seja feita – por alertar para a necessidade de guardar distância social! A partir daí, gerou-se uma dinâmica de apostas sobre a magna questão de saber se ainda acredita em vacas voadoras. Crê-se que esta actividade é de molde a contrabalançar a crise económica engendrada pelo Covid-19 e a sossegar os mercados e as agências de rating.

Alegada hipocondria do Prof. Marcelo: completamente deitada por terra, dada a insistência deste em manter o comportamento beijoqueiro que tem sido a imagem de marca da sua missão presidencial. É claro que acabou a fazer o teste para o Covid-19, procedimento, todavia, não usado em relação às vítimas dos seus abraços e beijos. Depois disso, desapareceu para uma casa com varanda, onde só recentemente reapareceu para comunicar qualquer coisa. Todavia, como não se percebeu nada do que disse, ficou-se na dúvida se foi da tecnologia utilizada ou se lhe terá dado uma coisinha má – oxalá não, que estamos todos desejando tirar um selfie com ele, para festejar a reentré da quarentena. De qualquer das formas, as apostas estenderam-se a este campo.

Discurso sobre eutanásia: totalmente erradicado dos mídia e redes sociais! Não sou de intrigas, mas suspeito que pairam por aí umas esperanças derivadas das preferências etárias do maroto Covid-19.

Papel higiénico, a grande vítima: não resistiu ao Covid-19! Ou então ausentou-se para parte incerta, pois não há quem o veja nos locais habituais. Ou, ainda, rabo limpo é o que está a dar.

Hortas dos amigos: por indicação da simpática directora-geral de saúde, passaram a ser alternativa preferencial ao açambarcamento praticado nos supermercados, desporto este que, todavia, se vai mantendo. Consta que há pessoas a disfarçar as hortas sob enormes sacos de plástico para fugirem à ganância dos... amigos; ou então não, talvez esteja a confundir com o caso da senhora que foi vista num supermercado com a cabeça enfiada num saco de plástico. Já nem sei o que digo!





 




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