terça-feira, 13 de outubro de 2020

AVEC LE TEMPS...


já tinha deixado para trás o tempo sem cor, o tempo amarelo das mimosas, o tempo vermelho das cerejas, vários tempos cinzentos e ainda outros tempos cuja cor não importa mencionar, até porque foram tempos de matizes variados, difíceis de colorir

deixou todos os tempos para trás não por ousadia ou desaforo, apenas porque é da natureza da vida: os tempos sucedem-se em movimento contínuo, substituindo-se uns aos outros, num atropelo por vezes vantajoso, outras vezes prejudicial (ou assim parece, ao menos até ao tempo do tempo seguinte)

não lhe foi preciso abandonar todos esses tempos para perceber que o melhor era, mesmo, permanecer em cada tempo, sem cuidar dos tempos idos, por menos maus ou muito maus que tivessem sido – e alguns haviam sido mesmo muito maus
 
de vez em quando, voltava os olhos e, sobretudo, o coração para trás, não para lamentar ou recriminar o que ficara, mas com o intuito de procurar alguma explicação ou justificação de si ou das suas circunstâncias, ou ainda um pedaço de céu límpido – um gesto amoroso, uma candura, um prazer ou apenas um remanso momentâneo de paz... – que lhe permitisse mimar-se, à sombra de uma nostalgia não feita de saudade, mas tão só de aconchego, que era para ela o verdadeiro sabor da nostalgia. longe de si voltar atrás ou chorar o que deixara, apenas aconchegar-se um pouco na recordação de um momento feliz, que tinha a lucidez de saber que era passado e nunca poderia substituir o presente, ou sequer alimentá-lo. digamos que se tratava de um passatempo, uma espécie de sonho lúcido ou uma fantasia, uma fantasia ao contrário das que inventara nos tempos idos – inclusive, até há bem pouco tempo –, nunca muito convencida de que iriam realizar-se, mas nem por isso menos encantatórias e oportunas. não tinha começado a criar histórias intermináveis mesmo no resvés da adolescência?! tantos personagens imaginários com os quais coloria os tempos cinzentos... sem nunca confundir ficção com realidade, antes como quem constrói recursos para dar cor e brilho a esses tempos, talvez na secreta esperança de que uma vida de faz de conta pode ajudar a ultrapassar um tempo que se contado...

agora, de cada vez que ía ao baú dos tempos idos, notava que algumas objectos já por lá não andavam ou então tinham perdido cor e brilho e, com eles, a própria definição. pensava, então, na canção do Léo Ferré, "Avec le temps" – "Avec le temps/Avec le temps, va, tout s´en va/On oublie le visage et l´on oublie la voix/Le coeur, quand sa bat plus, c´est pas la peine d´aller/Chercer plus loin, faut laisser faire et c´est trés bien..."

percebia, então, porque sempre amara essa canção, mesmo no tempo muito ido em que a conhecera e não prestava atenção à letra (porque nunca se concentrava o suficiente para prestar atenção às letras das canções, o que não significa que lhes não entendesse o sentido)

de resto, já sabia, de há muito e de experiência, que as caras eram as primeiras a desaparecer, com elas as vozes, talvez depois as histórias. e o amor? o amor, esse, não se podia esvair na lembrança, o amor não, ou assim fantasiava, embora com a lucidez de admitir que podia não passar de mera fantasia, como as fantasias dos tempos muito idos

o curioso é que não sentia cansaço nem estava impossibilitada da ilusão. talvez apenas se tivesse tornado invisível, uma impressão concreta de que já não... mas que sabia ela? e que importava?! era o tempo presente e também ele, pela ordem natural das coisas, se tornaria passado, se não para ela, para outros... agora já divisava o tempo em que a sua face se esbateria e acabaria por virar mancha e depois nada. e a sua voz, cada vez mais sem corpo. até ficar apenas a memória do amor. sim, talvez esta sobrevivesse

de resto, que importância poderia ter tudo isso? não muita, mas alguma, a de explicar o divertimento com que, ao dizerem-lhe, "estás quase a fazer anos", ela respondia, com um ar gaiato e lúcido, de quem irreleva a passagem do tempo, porque é assim e está bem assim (et c´est très bien)...

... e o que respondia era:

"agora já não faço anos, limito-me a descambar para o dia seguinte!"

e sorria, porque sempre foi de sorrir, e despertava sorrisos (e talvez os seus sorrisos sejam uma espécie de amor...) 







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