Sempre adorei histórias de família, talvez porque meus Pais tão bem as sabiam contar. Deixo aqui uma delas, imagem de inocência e graça, que teve o condão de me despertar especial ternura, mesclada com divertimento.
Minha Avó materna, de nome Francisca Felicíssima, nasceu num belo casarão de pedra, onde cresceu na companhia de vários irmãos e irmãs, assim chamados: José, Carlos, João, Fausto, Roque, Adelaide e Maria Augusta, esta, creio que a mais nova, a quem atribuíram o petit nom Migutinha.
Por essa altura, algures entre o final do século XIX e o início do século XX, os meninos, pelo menos esses meninos, não eram directamente criados pelos pais ou (apenas) pela mãe; tal tarefa competia a amas, contratadas e trazidas para casa, uma para cada um deles.
As crianças viviam, assim, de certo modo apartadas do controlo parental e, talvez por isso, entregavam-se a brincadeiras desejavelmente evitáveis, como, por exemplo, explorarem as preciosidades dos sótãos e brincarem aos teatros com vestidos e outras roupas dos (mais) antigos, que se davam ao luxo de rasgar à tesourada, para uso mais adequado aos objectivos pretendidos. A mãe nem se apercebia, as amas reportavam os progressos dos meninos, quando interrogadas, talvez omitindo os disparates, afinal e em última análise de sua responsabilidade.
Certo dia, nas suas brincadeiras, os irmãos da Migutinha pregaram-lhe uma partida ou algo do género, que a deixou deveras magoada. Em reacção, juntou algumas peças de roupa, enrolou-as numa pequena trouxa, e saiu de casa, atravessando a quinta até ao tanque de pedra onde jorrava, vinda de uma fresca nascente, a água cristalina que abastecia a casa e a propriedade, anunciando a intenção de se matar!
Acabou por regressar mais tarde, não sei se por iniciativa própria se por intervenção dos irmãos ou da ama, sem ter concretizado o intuito de mergulhar no tanque até ao afogamento ou sabe-se lá o que tenha idealizado que seria a morte auto-infligida, em direcção à qual partira munida de umas roupitas.
Portanto, não foi bem o suicídio, mas o quase suicídio da Tia Migutinha!
E ainda bem, até porque, caso contrário, ter-me-ia privado do imenso gosto de a conhecer. Na verdade, ela veio a tornar-se na minha tia-avó preferida, desde logo, pela sua simpatia e doçura.
Recordo que, sendo eu criança, a minha avó costumava levar-me, quando a visitava. Conservo uma recordação muito grata dessas ocasiões, não só pelas suas referidas características, mas também porque gostava muito da sua casa, situada em pleno campo, numa localidade um pouco fora da cidade em que, então, vivia. Ainda mantenho a lembrança da amplitude e luminosidade do salão em que nos recebia e do tesouro que aí guardava, elegantemente colocado sobre um móvel: uma caixinha de música, daquelas em que, mal se abre a tampa, surge uma bailarina a dançar. Que deleite, levantar aquela tampa e assistir ao salto e ao bailado da pequena dançarina! Fazia-o repetidas vezes, enquanto a avó e sua irmã conversavam em reconfortante sossego e harmonia.
Mais tarde, em plena juventude, tendo já mudado de cidade, quando, em férias, regressava a casa de meus Pais, lembro-me de, frequentemente, a Mãe me sugerir que visitasse a tia Migutinha, que teria perguntado por mim e manifestado esse desejo. Por uma razão ou por outra – certamente por não ter ainda incorporada a certeza da inexorabilidade da passagem do tempo e da finitude das pessoas –, fui adiando a visita; depois, fez-se demasiado tarde, pois a Migutinha deixou de estar entre nós. Isto, entenda-se, no plano físico, porque, como decorre desta narrativa, ela permanece bem viva no meu coração.
Em memória, deixo a fotografia da casa onde nasceram e cresceram minha Avó Francisca e minha Tia-avó Maria Augusta, Migutinha, lamentando que, hoje em dia, esteja praticamente reduzida a ruínas, como o meu sonho de menina de a vir a tornar minha.
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