segunda-feira, 19 de agosto de 2024

MARIA NINGUÉM (4): TRAÍDA POR UM SONHO


senti uma pancada nas costas, que me fez levantar a cabeça, atarantada, e os meus olhos bateram numa cara vermelhusca, cuja boca de dentes amarelos – nem todos... faltavam-lhe alguns – vociferou: "toca a andar que se faz tarde!"

assim de repente, a minha preocupação concentrou-se na pasta das notas, mas durou breve, pois rapidamente despertei por completo e constatei a triste realidade, acabava de passar pelas brasas e, enquanto isso, inventara aquela história estrambólica do milagre dos rolos das notas de cem euros. o desapontamento não foi maior por não estar habituada a milagres, nem sofrer da esperança de que acontecessem. assim, em vez de tombar num desgosto de decepção ou numa raiva de desacontecido, explodi a rir com quantas forças tinha e de forma um tanto descontrolada.

a cara vermelhusca fixou-me, misto de fúria, curiosidade e receio, e, com gesto de braço esticado, indicou-me a porta da rua. as lágrimas afloraram-me aos olhos, mas foi – ou quiçá tenha sido – de tanto rir, abandonei a mesa onde estivera a degustar a sanduíche de fiambre e o galão ou meia de leite ou já não sei bem o quê – nem estou para voltar atrás, a fim de rever o escrito antes – e saí da pastelaria, passando pelo dono daquele  rosto hediondo sem proferir palavra.  ao contornar a montra suja, divisei a minha figura despenteada, a que dei um jeito, fazendo dos dedos pente, e reconstituí a cena: gaja acabada de sair do hospital alapa-se na primeira espelunca que lhe aparece, no intuito de fazer contas à vida, e acaba a fazer contas a rolos de notas de cem euros, inexistentes. o resumo perfeito, disse para comigo, sem poder evitar novo ataque de riso. já era busco-fusco e tinha de dar um rumo, senão à vida, pelo menos ao corpo, ainda bem dorido e cansado. resolvi voltar ao quartinho do sótão da mansão do Drácula, sem saber se me receberiam de volta.

ou então, não! afinal, sempre ouvira dizer que nunca se deve regressar onde se foi feliz, era hora de complementar: e, muito menos, onde se foi infeliz. obviamente, isso levantou-me o problema de não descortinar ponto de retorno.

sem mais, lembrei-me da casa dos velhotes, para onde, anos antes, o meu pai me tinha despachado e concluí duas coisas, primeira, estava a ser injusta, aí até tinha sido feliz, quero dizer, pelo menos não me tratavam mal, segunda, valeria a pena tentar desafiar o estabelecido, regressar lá, de qualquer das formas, não tinha nada a perder, embora pela simples razão de não possuir nada, mesmo.

por razões óbvias – de qualquer modo, não perderei tempo a explicá-las –, recordei a morada. caminhei com a pressa de quem espera encontrar uma mala de cabedal cheia de notas de cem euros – novo ataque de riso – e, uma vez chegada, achei por bem consultar o écran do telemóvel, antes de tocar à campainha. Oh diabo!, exclamei, ao constatar que as onze já caminhavam para a meia noite.

por qualquer acaso do destino, se é que isso existe, a porta abriu-se, dando passagem a uma explosão de luz e, envolto nela, um ser misterioso (anjo?) que, já próximo de mim, se converteu num homem aí dos seus quarenta anos, acompanhado de dois cães, esbeltos galgos, nos quais parecia concentrar-se toda a energia em falta na minha desgastada pessoa. por alguma razão, lembrei-me de um livro, "O Homem Que Gostava de Cães", do Leonardo Padura, e pensei se..., ora, não pensei nada, afinal, sabia lá eu da existência desse livro ou autor!, mas tal não significa que, mais tarde (e por mera hipótese), não o tivesse vindo a ler e a apreciar sumamente.

o homem que parecia gostar de cães – via-se pela maneira como lhes segurava a trela e lhes dava ordens, no caso, para não se lançarem sobre mim, toda encolhida a uma canto, a resguardo da maior exuberância da luz – fixou-me com os olhos semicerrados e, sem mais hesitação, disse: "tu não és a..., aquela rapariga que trabalhava para os meus avós, a..., olha, desculpa, não me lembro do nome, já lá vão uns anos." – e sorriu, como quem pede misericórdia. "não sei se sabes, mas eles gostavam muito de ti, creio que até pediram aos meus pais..." – hesitou por instantes – "bom, isso agora não interessa, eles não..." – interrompeu-se, enquanto me fitava, não sei se a reflectir em algo ou à espera de uma interpelação.

"sim, sou essa", respondi, completamente às escuras sobre a identidade do meu interlocutor, afinal, não me lembrava de ninguém a frequentar a casa dos velhotes, excepto a criadagem, ou seja, os meus colegas. mas, de repente, ocorreu-me uma altura em que uma filha deles, acompanhada do marido e do filho, rapaz uns anos mais velho do que eu, apareceram lá em casa, não sei com que objectivo, mas, a avaliar pela duração da visita, pelas vozes alteradas que as paredes da sala não conseguiram reter e pela tensão das despedidas, concluí que tinham ido apenas fazer a prova de vida e do estado de conservação dos velhos, certamente, para melhor avaliarem o tempo de espera da herança.

algo deve ter transparecido do meu olhar, que levou o homem que parecia gostar de cães a afirmar, "sim, sou eu, o afonso, estive contigo na cozinha enquanto os meus pais falavam com os teus patrões, a quem tinham vindo pedir ajuda para a compra de uma casa nova, com piscina e tudo." – reparei que o dizia com tristeza, como se num desacordo visceral com os progenitores, e adiantou – tal qual se em sequência lógica: "enfim, bem gostava de ter passado mais tempo com eles, com os meus avós". levou o olhar para longe e, após uma pausa, regressou com os seus aos meus olhos e perguntou, em jeito amigável: "e tu, o que fazes aqui?" sem saber muito bem porquê, respondi, "eu também", logo me apercebendo da incongruência da resposta.

e assim ficámos, parados no meio da noite, cada qual embrenhado em seus pensamentos ou anseios.  


P.S. : este texto é continuação do (post) de 14 de Junho p.p. e, com sorte, irá prosseguir. (falta o desenho-ilustração, porque continuo sem conseguir carregar fotos para o blog)



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