terça-feira, 15 de outubro de 2024

O HOMEM QUE SE DESINTEGROU DIANTE DE MIM

seguíamos no mesmo autocarro, ignoro se com idêntico destino – parvoíce, ninguém partilha destino com ninguém, apenas natureza, a (dita) natureza humana, estranha criatura, cimento dos males do mundo.
ele aparentava uma calma quase diáfana, como se estivesse em estado de yoga, meditação ou simples introspecção, mas sossegada (por vezes, a introspecção vai tão fundo nas entranhas que desatina qualquer mente, inclusive as mais recatadas ou que assim querem parecer).
não reparou em mim, pois, como acabei de contar, seguia, por assim dizer, na dele, uma suave onda muito própria. e, todavia...
a dado ponto, notei-lhe um brilho inusitado nos olhos, algo a destoar da atitude (ou aparência) anterior. embora ao de leve, mexeu-se no assento, desajeitado, como se a pressentir ou a fugir de um qualquer incómodo, uma dor, comichão, guinada, sei lá, não sou bruxa, como poderia saber?
momentos depois, levantou-se, estendeu a mão para o botão de sinalização de paragem do autocarro – será que ainda existem autocarros com tais botões?, pergunto-me agora, não que interesse alguma coisa para o caso – e deu uns passos em direcção à saída.
obviamente, esta conduta seria algo banal, não se tivesse dado o caso de a sua mão, de dedos finos e elegantes, com um dos quais accionara o botão, se lhe ter desprendido do pulso e descido, desamparada, em direcção ao chão, onde se quedou, imóvel e aparentemente indiferente, sem correr atrás do braço a que, até então, estivera ligada e, curiosamente, o homem não voltou atrás para a recolher, aliás, nem pareceu aperceber-se do sucedido.
eu olhava, atónita, e mais atónita fiquei ao constatar que mais ninguém reparara, apesar de a mão continuar ali deitada no chão e o homem caminhar, indiferente, para fora do autocarro, entretanto parado – agora, ao pensar nisso com maior distanciamento, não estou certa de que houvesse mais pessoas no autocarro, excepto o motorista, claro. 
levantei-me de supetão, sustei com um grito o gesto de recomeço de condução do motorista e, por entre desculpas murmuradas, precipitei-me em direcção ao homem, sem saber muito bem porquê.
como se por magia, ele acabava de se desvanecer não sei onde nem como e, após ter varrido, sem êxito, as proximidades e o horizonte mais longínquo com os olhos febris de curiosidade e impaciência, acabei por os fixar no chão, talvez na esperança de aí encontrar o seu rasto. 
a princípio, não entendi bem, mas rapidamente se tornou claro que aquilo era um pé, envolvido numa meia cinzenta, a sair dum sapato preto.
não conseguia despregar os olhos do chão e do que aí se ia deparando ao meu olhar esgazeado de tamanha e tão inusitada extravagância: a seguir àquele pé ainda calçado, uma mão, a gémea da que ficara no autocarro, os mesmos dedos finos e elegantes, quase delicados, uns metros à frente, o outro pé e, de metro a metro – se é que era esta a medida da distância e não outra –, seguiram-se, primeiro um depois o outro, os joelhos, troços de cima e de baixo das pernas, fatias do tronco, os braços e, por fim, a cabeça, a cabeça do homem do autocarro, com os olhos remetidos à serenidade inicial, como se o seu único momento de perturbação, o longínquo momento em que se levantou para pressionar o botão de paragem do autocarro, mais não fosse do que a pressa de se desintegrar, de se perder em pedaços desligados, para, assim, reencontrar a paz.
senti um sopro nas costas, voltei-me, era apenas o vento daquele princípio de inverno e nada mais, nem os restos desgarrados do corpo do homem que eu, estava certa, acabara de ver. sobressaltada, voltei a olhar em frente, também a cabeça já desaparecera. 
vislumbrei apenas um vasto campo aberto, despido de tudo quanto pudesse imaginar-se e quedei-me sem respostas, suspensa na inquietante angústia de ignorar o que sucedera ao homem, que destino tinha sido o seu, já para não pensar no meu.
depois, dei comigo a deambular não sei bem por onde, por que destino, enquanto me interrogava, qual homem?




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