segunda-feira, 7 de fevereiro de 2022

O MEU PRIMO RAUL PARTIU


Um menino com ar vivo, olhos grandes, amendoados, brilhantes, cabelo preto, caracóis (?), a vida toda pela frente, um entusiasmo que não passa despercebido.

É o meu primo Raul, uns poucos anos (quatro, cinco?) mais novo do que eu, naquele dia longínquo em que o convidámos para almoçar lá em casa, almoço do meu aniversário, eu no início da adolescência, ele para lá caminhando. Veio connosco, meu Pai e eu, do Liceu, era 17 de Dezembro de um ano muito ido, embora para a conservação da memória, esta de que venho falar, pareça o ano ontem.

Em nossa casa, os dias de aniversário eram celebrados com muito carinho, um ou dois presentes – nada de grandes aparatos e muito menos carestias – e almoço melhorado, sempre a culminar no bolo russo ou bolo enrolado – torta de chocolate –, que a Mãe, com suas delicadas mãos, terminava num acabamento de açúcar, desenhado com finos traços decorativos. A mesa, vestida de toalha festiva, era enfeitada, as mesmas mãos, com bombons animados de variadas cores, feitos de chocolate recheado com um creme ligeiro. Não recordo se havia o hábito de se cantarem os Parabéns e soprarem velas, creio que não, mas aqueles eram ditos do fundo do coração, logo pela manhã, – nesse dia, sendo eu a destinatária, assim: Viva a Bélita! Tudo se restringia ao nosso núcleo familiar, pais, avó que connosco vivia, meu irmão e eu. 

Contudo, naquele dia, por razões que me fugiram da memória, convidámos aquele priminho. E ainda bem! Levou-nos alegria e vivacidade e, também, um presente para mim. Tratou-se de um cachecol de xadrez, em tons suaves que incluíam um diáfano verde água, feito de tecido macio e envolvente, que achei maravilhoso, tanto naquela altura como muito mais tarde, quando, já levado por anos de distância, lhe perdi o rasto, mas nem assim deixei de o procurar no enorme malão da cave, onde iam parar as peças caídas em desuso. Creio que o cachecol representou, para mim, a novidade de um presente extra – tão mais valorizado quanto, por esses tempos, eram raros e de pouca monta os presentes que me cabia receber –, mas, sobretudo, a alegria de a mesa de aniversário se ter aberto a um novo comensal, desmentindo a ideia de que o mundo éramos apenas nós os cinco.

Na verdade, adorei a novidade do almoço com novo participante e, estou certa, o Raul adorou o almoço. Disse até – e creio terem sido estas as suas palavras – que havia de ir mais vezes almoçar a casa do tio doutor (meu pai, professor do Liceu, irmão mais velho da sua mãe).

O tempo correu, como sempre corre, e, anos mais tarde, vim a cruzar-me com ele, também em casa de meus pais – na cidade da qual ambos já tínhamos saído –, acompanhado da mulher e de duas ou três crianças pequeninas, seus filhos. Era ainda muito novo, creio que na casa dos vinte, e eu comentei, – Então, Raul, já tantos meninos!, agora ficas-te por aqui, não? Respondeu-me, com convicção, que viriam os que Deus quisesse. E assim foi, as crianças foram-se sucedendo, formou uma linda e vasta família.

Entretanto – dotado de formação superior na área de engenharia –, afirmou-se e ascendeu profissionalmente a limiares justificados por uma clara inteligência e uma enorme força de vontade e competência.

A dada altura, precisei de uma ajuda sua e não hesitou em prestar-ma.

O tempo continuou a correr, como sempre corre, já se sabe, e nas décadas seguintes – aliás, à semelhança de sempre –, poucas vezes nos vimos, essas poucas em bons e maus momentos da vida familiar.

Há uns tempos, tive conhecimento de que o Raul, que sempre vira pujante de força e afirmação, padecia de uma doença grave.

Hoje, o meu irmão telefonou-me a dar a tristíssima notícia da sua morte, a morte do menino espevitado e alegre que tinha levado um bonito e inesquecível cachecol e, sobretudo, um fôlego complementar de vida e alegria ao meu longínquo aniversário já não sei de há quantos anos. Vieram-me as lágrimas aos olhos, engoli-as, decidi converte-las em palavras.

Há pessoas que, nem que seja por um curto episódio de vida, têm lugar marcado no nosso coração, não importando se com elas convivemos muito ou pouco. Assim o Raul, para mim. 

Despeço-me dele desta maneira, desejando que descanse em paz, na santa paz do Senhor, como creio ser aquilo que almejava e em que acreditava.






quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

POBREZA MENSTRUAL...

...OU SERÁ POBREZA MENTAL?

Há tempos, num zapping pela TV, deparei-me com uma jovem, ao que percebi deputada (ignoro por quem e porquê), a perorar sobre "pobreza menstrual". 
Obviamente – acho eu! – fiquei perplexa e, ao mesmo tempo, curiosa, sobre o significado de tal expressão. De tal forma que nem me ocorreu qualquer significado possível, por exemplo, baixo caudal menstrual (como uma amiga a quem contei, por certo mais criativa do que eu, sugeriu).
Felizmente, a entrevistadora, ciente da burrice ou falta de imaginação de espectadores (ou deverei escrever espectador@s?) como eu, pediu gentilmente à entrevistada que explicasse do que falava. E foi aí que se fez luz: "pobreza menstrual" é a situação em que se encontram as mulheres – suponho que os homens ainda não sofrem essa carga mensal – carentes de meios económicos para suportar as despesas com os artigos de higiene, vulgo, pensos/tampões higiénicos e afins, necessários durante a menstruação.
Logo uma outra convidada do programa, abanando afirmativa e compungidamente, a cabeça, referiu que até havia quem recorresse a pão para fazer as vezes de penso higiénico…
Desliguei, de imediato, a televisão, não me fosse aparecer outro assunto do género, logo a mim, que só procurava uma série policial ou um filme de jeito.
A situação em causa é, obviamente, do mais lamentável, triste e revoltante que se pode imaginar. Só que, em minha opinião, tem apenas um nome: pobreza! Não é dela que aqui trato, até porque, infelizmente, por mim só, não disponho de competência ou capacidade para a resolver.
Trato, antes e apenas, da questão ou abordagem terminológica.
É que me irrita solenemente esta tendência, entroncada no execrável, porque hipócrita e hitleriano, politicamente correcto, de atribuir certos nomes às realidades, como se assim ganhassem uma importância que doutro modo não alcançariam, no pressuposto de que só os utilizadores dessa nomenclatura estão habilitados ou titulados a invocar as realidades subjacentes, sendo, por outro lado, banida a terminologia habitual, como menor e desadequada. Existe, ainda,  uma certa provocação no uso de dadas palavras como expressão de uma afirmação de princípio — de que devem ser empregues para se atingir o cerne das respectivas problemáticas. Enfim, uma espécie de pensamentos mágicos!
Ora bem, segundo me parece, uma pessoa que não dispõe de dinheiro para prover os bens necessários à higiene durante a fase menstrual é, pura e simplesmente, uma pessoa pobre. POBRE. E pobres não deviam pura e simplesmente existir, aliás e para evitar mal-entendidos, a pobreza, na sua abjecção social e moral, não devia existir ou, sequer, ser admissível!
Então para quê autonomizar essa faceta da pobreza? Será que providenciando pensos higiénicos a essa mulheres pobres elas deixam de ser pobres? Não me parece.
Resta ainda outra questão: uma vez autonomizada tal expressão da pobreza, porque não autonomizar as restantes, por exemplo: pobreza fecal (falta de dinheiro para papel higiénico) ou pobreza ranhosa (falta de dinheiro para lenços)… Ridículo, não é?
Por falar em ridículo, querem saber outra? Agora não é de bom tom contrapor mulher a homem, devendo aquela ser designada como "pessoa com vagina" e este – calculo – como "pessoa com…". Bem, fico-me por aqui, que já basta de parvoíce.




 


terça-feira, 9 de novembro de 2021

A PROIBIÇÃO DO OUTONO

pessoas cinzentas deslizam pela rua, aqueles dois, homem e mulher, de mãos dadas, força do hábito, comodidade ou outra porra qualquer, duvido que seja amor, ela de cara tensa, talvez pensando que o domingo em breve será segunda-feira, ele abstraído num mundo só dele, bem podiam desligar-se das mãos que nem dariam conta, os corpos prosseguiriam cada um por seu lado, talvez em direcções opostas; ou então não, foi apenas o amor a resistir à passagem do tempo, o mesmo é dizer, da vida, há quem afirme existirem casos que tais e, a ser assim, a cara tensa dela há de descontrair-se e a cara vaga dele há de baixar à terra, quando se olharem frente a frente, por exemplo, ao chegarem a casa, e até lá entregam as despesas da conversa e da comunicação às suas mãos unidas por hábito de amor, aqui não há lugar a mais hipóteses.
e o sol, agora já tão baixo, brilha num céu plenamente azul, aquece o horizonte e as proximidades, ambos, sol e céu, conluiados numa tirania arrogante, impedindo o outono de se manifestar. nem farrapo de cinza nem fita de água deslizando das alturas, nem ambiente de castanha assada e quase véspera de natal. porém, não faltam iluminações absurdas, absurdas por este sol, tirano dourado, por este céu, tirano azul, conspirando ambos contra quem de direito aqui devia estar a repor o lugar da nostalgia e do aconchego, esses lugares cinzentos que velam o longe e restituem a calidez da infância.
avanço, logo à frente paro, e assim e assim sempre, porque é a cidade iluminada de céu e sol, os semáforos domingueiros estão malucos e os condutores adormecidos, demoram eternidades a arrancar, como me irritam estes pasmados!, cidadãos pasmados, talvez amolecidos por este sol e este céu fora de tempo. sim, sei-me excepção nisto de padecer por carência de outono, dessa espécie de cinzento.
passo por sítios que me são velhos, como o instituto do medicina legal, que já me vi obrigada a frequentar, não na qualidade de morta (e daí, quem sabe?), mas na de observadora de autópsias – exigência da cadeira de medicina legal. memórias evitáveis, que, todavia, insistem em permanecer.
memórias outras, bem melhores: o fim de setembro/princípio de outubro, quando o tempo era como devia ser, as estações do ano iguais em direitos, não sujeitas à tirania umas das outras, função de absurdas e irreparáveis alterações climáticas. nem de propósito, lá estão eles em glasgow, mais uma cimeira da treta, fazem de conta, agendam metas para decénios futuros, quando já não estarão cá e talvez já ninguém esteja. bem vistas as coisas, poderá residir aí a solução, deixar morrer o planeta de humanos, para depois a natureza renascer em paz.
regressei a casa.
as pessoas cinzentas também regressaram ou hão de regressar a casa, é o recolher da escuridão, os tiranos retiraram-se, um abaixo do horizonte, o outro atrás do manto lunar, faz escuro, descontando as estrelas e os candeeiros. o casal de mãos dadas deslargou-se para entrar em casa e agora vamos ficar a saber se era amor, aquilo das mãos dadas e das caras a direito, ela tensa, na sua, ele absorto, na dele. irão enlear-se num beijo, as mãos dele segurando o pescoço dela, as dela rodeando as costas dele? ainda que sem palavras? sem palavras, mas com desejo ou apenas ternura? ou as palavras são as derradeiras provas de amor? haverá amor sem palavras? por exemplo, a palavra amor, significa o quê? poderá traduzir a tensão de uma cara e a dispersão da outra, entrelaçadas pelos dedos de duas mãos que só se desprendem para entrar em casa?
e o outono, que significa agora o outono, quando há dois tiranos luminosos à solta empenhados em o proibir?
dúvidas, apenas dúvidas, já não existem certezas, nunca houve tanta  carência de certezas. por isso me faz falta o outono, ser reconduzida ao aconchego da idade infantil, aquela em que tudo era tão certo e tão seguro como as nuvens e a chuva de fins de setembro/princípios de outubro, altura em que o fumo das castanhas assadas se evolava desenhando um cheiro morno e acariciador e as mãos dos pais distribuíam protecção, enquanto das suas bocas saíam palavras definitivas e indesmentíveis.







segunda-feira, 16 de agosto de 2021

ATÉ AS MOSCAS SUMIRAM!

este verão, anda tudo tão apalermado que nem a silly season se manifesta, aliás, até as moscas sumiram. quanto ao sumiço destas, ainda bem, mas não no tocante à silly season, que sempre era motivo de divertimento.
ou então – e parece-me que é mais isto –, a idiotice tomou conta do ano inteiro e já nem dá para reparar quando calha sobressair nos calores de agosto.
os gloriosos verões animados por gafes de governantes perderam força, ou não se tivessem tornado uma constante ao longo de todas as estações. por exemplo, quem se lembra de encarar com cinismo o facto de, em plena época de incêndios, ser noticiado que os sistemas de detecção de fogos – sim, já não é bem o SIRESP – não funcionam? ninguém, pois, em se tratando do departamento do ministro cabrita, vem logo à memória um variado leque de acontecimentos susceptíveis de relegar aquele para segundo plano, por exemplo, o caso do estrangeiro que, em tempos, se suicidou nas instalações do SEF do aeroporto de lisboa, sem ter sido socorrido pelos inspectores daquela instituição, que, quando o viram estirado no pavimento, se limitaram a mandar-lhe uns pontapés, uns socos e uns bofetões, apenas para confirmarem a evidência, o tipo já não mexia, estava mortinho e, já nada havendo a fazer, por lá o deixaram; também podia acorrer à lembrança o caso, mais recente, do operário em trabalho numa autoestrada portuguesa que se atravessou negligentemente à frente duma viatura na qual o dito ministro se fazia transportar à razoável velocidade de aí uns 200 Km/hora; que atire a primeira pedra quem nunca.
é claro que, em defesa da silly season, sempre se poderia invocar um caso fora da alçada do dito (e azarento) ministro, por exemplo, da área da saúde; concretamente, a mais vertiginosa evolução científica de todos os tempos, mercê da qual, em cerca de uma semana ou talvez nem tanto, se evoluiu da proibição à recomendação da vacinação dos menores entre os doze e os quinze anos; ainda por cima, tratando-se de uma evolução científica não baseada na evidência de fatos devidamente comprovados, mas em critérios inatingíveis pelo comum dos mortais. todavia, desculpem-me insistir, por mais boa vontade que se tenha, esta via não dá para salvar a silly season, dadas as mais que as mães mudanças radicais a que, ao longo de quase dois anos, nos habituou a dr.ª graça freitas: anúncio de que o (agora velho) novo coronavirus não voaria até portugal/mas cá aterrou, não se justificava o uso de máscaras/justificava-se o uso de máscaras, a vacina da astrazéneca não devia ser aplicada aos velhos/a vacina astrzéneca só devia ser aplicada aos velhos, etc, etc, etc.
podia, ainda, lançar-se mão do recente caso dos senhores do chega de (salvo erro) vila real – que vergonha, tinha logo de ser a minha terra! –, que, após o seu capataz, cujo nome nem quero pronunciar, mas que possui uma coelha chamada acácia, ter andado a defender a não vacinação e ter contraído covid, vieram alegar que ele não se vacinara por receio de o enfermeiro ser do PS e lhe enfiar veneno; e, não contentes, desaconselharam os militantes de se vacinarem por idêntico receio (brigada de vacinação do PS, munida de um veneno especial anti-chega). isto sim, é bastante divertido, pelo menos tão divertido  quanto estúpido e caricato, mas vindo de um partido que nos tem tão bem habituados a cenas estúpidas e caricatas, não se me afigura  suficiente para salvar a silly season (embora me tenha provocado um saboroso ataque de riso).
e é isto! quanto às moscas, felizmente e contra o habitual por esta altura, não me têm entrado pelas janelas dentro! convenci-me que uma coisa anda ligada à outra, ficaram atascadas na m**** espalhada ao longo do ano, no que até fizeram bem, porque agora, como comecei por referir, a m**** da silly season quase nem se nota.
temos que fazer como as moscas, (obviamente) com as devidas adaptações: rir ao longo do ano.



(imagem obtida em pesquisa google)




terça-feira, 10 de agosto de 2021

O ÚLTIMO VOO DA MACACA


no último ano da faculdade, vivi numa residência universitária, gerida por freiras à paisana, ou seja, que não usavam hábito. não frequentava a capela e decorava o meu quarto (privativo) com cartazes de minha autoria, habitados por figuras de amantes enlaçados em beijos e de frases do tipo, vale mais acreditar no diabo do que em deus, pois do diabo nada há a esperar e de deus nada há a receber, no que era, sem dúvida, uma manifestação tardia de provocação adolescente, apenas compreensível pela razão de ter desperdiçado a adolescência ensimesmada em tão profundas quanto deprimentes querelas existenciais, que apenas me levaram a conclusões do tipo da condensada naquela asserção, enquanto deixava passar a florescência própria dessa fase da vida, tão irrepetível quanto qualquer outra, mas com uma perda talvez superior ao desperdício de qualquer outra.

nada disto interessa àquilo de que me proponho falar, excepto pelo facto de ter sido nesse contexto que conheci a macaca, outra das residentes no citado local. curiosamente, não me recordo do nome dela, soa-me vagamente helena, mas sem certeza. macaca era a alcunha atribuída por outra nossa companheira de habitação, a j., de que me tornei grande amiga (anos mais tarde vim a ser madrinha de um dos seus filhos). a j. era muito viva, simpática e engraçada; atribuía estas alcunhas por brincadeira e sem intuitos ofensivos. a mim, chamava-me buda, talvez devido aos meus olhos achinesados e lábios carnudos, bem como ao meu forte interesse pelo oriente longínquo.

a macaca era madeirense e frequentava um curso de letras; aspecto frágil, magra e não muito alta, de proporções harmoniosas, do seu sorriso irradiava um brilho dourado, talvez porque o dourado predominava no seu rosto de feições perfeitas, um pouco asiáticas por virtude dos olhos rasgados e dos pómulos salientes: dourado era o cabelo, o tom da pele e os olhos, estes cor de mel. era discreta e simpática.

mesmo sem sermos especialmente próximas, a dada altura, a macaca contou-me do seu mundo interior, um mundo de negrume, tanto mais negro quanto o flagrante contraste com a irradiação luminosa da sua miúda pessoa. em aparente serenidade e sempre sem perder o sorriso, disse-me da sua família, pai, mãe e irmãos (não recordo quantos, mais do que um) e da doença de que, à excepção da mãe e justamente por herança paterna, todos sofriam, doença mental incapacitante e incurável (cujo nome não me lembro se referiu). ouvi-a atentamente, como sempre gostei de ouvir as pessoas, devo ter-lhe endereçado algumas perguntas e frases animadoras, como sempre tive por hábito fazer, mas nada em pormenor me restou na memória, excepto a percepção nítida (e compadecida) de que a vida da macaca estava marcada por um feroz receio, sem dúvida com a marca das maldições: (vir a) sofrer da doença paterna, que já pendia sobre os inocentes irmãos.

aquilo inquietou-me, mexeu-me por dentro ao ponto de permanecer como uma das inúmeras memórias empáticas que acumulo.

o tempo decorreu, acabámos os cursos, deixámos a residência universitária, cada qual seguiu o seu caminho e nunca mais soube notícias dela.

não muitos anos mais tarde, em conversa com a j., talvez rememorando aqueles tempos, perguntei-lhe se sabia alguma coisa da macaca. respondeu-me: "suicidou-se, atirou-se dum quinto andar da avenida cinco de outubro". gelei de desgosto, talvez não tanto por aquela morte, mas pelo profundo sofrimento que à mesma tinha conduzido como único caminho de libertação.

ao longo da vida, este caso, como tantos outros, veio-me ocasionalmente à memória, nos últimos tempos com uma insistência maior, que me reclamou a necessidade de o relatar. talvez uma homenagem à gentil macaca, cujo sofrimento e, sobretudo, a elegância com que dele me fez testemunha, nunca consegui esquecer. e, sem dúvida, uma homenagem à coragem do seu acto final, o último voo.






 

sábado, 12 de junho de 2021

E SE FOSSE ASSIM?


não se tratou de um pesadelo, os pesadelos vinham embrulhados em cor diferente, que não refiro para não me repetir. desta vez, foi apenas um sonho, não um sonho acordado, do jeito dos que, no dizer do poeta, "comandam a vida", mas um sonho-sonho, daqueles a dormir, que talvez sejam comandados (ou encomendados) pela vida – embora, no caso, falar em vida seja, no mínimo, cínico... 

acabara de se deitar, ainda nem apagara a luz. tudo parecia sereno, quando um peso bruto se lhe abateu sobre o lado esquerdo do peito, albergue do coração e de outras vísceras. os olhos fixaram-se no tecto, reluzente de branco e, como se por efeito ricochete – causador de estranheza, mas aceite com assinalável naturalidade –, viu a boca, a sua própria boca, lábios entreabertos, talvez demasiado pálidos, deixando sair uma onda de corpo ascendente, que lhe lembrou a sombra de um mergulhador a evoluir para a superfície da água. só que, em vez de água havia ar, e em vez de superfície aberta erguia-se a barreira do tecto, onde os seus olhos de brilho perdido se estampavam. nada disso se lhe afigurou estranho ou ameaçador, nem para tal teria tido tempo, pois tudo se desenrolava com a naturalidade da abelha rainha a ser obedecida e com a rapidez do tempo que passa, quando, decorridos dez anos, ou menos, dependendo da idade do observador, se olha para trás.

aquela sombra de corpo movia-se com elegância e graciosidade, por força do simples movimento dos braços que, alinhados na perpendicular, se afastavam e juntavam ao de leve e sem amplitude de maior. com a mesma leveza, o corpo-sombra ultrapassou o tecto tal qual se ele ali não estivesse plantado, nem fosse barreira pouca, de betão, já agora.

as suas pálpebras descaíram, aliviadas do peso que, pouco antes, se lhe abatera sobre o lado esquerdo do peito e, mesmo com elas descaídas, conseguiu divisar o que se passava do lado de lá, para além do tecto, o tecto que funcionou como se não existisse.

era lindo de ver: o corpo-sombra subia e subia, por força do movimento dos braços, envolto numa neblina que rapidamente passou do cinzento ao azul claro e, depois, à ausência de cor, a menos que a luminosidade possuísse cor. atingida a luminosidade o corpo-sombra fundiu-se com ela, tornando-se invisível enquanto objecto autónomo, apenas vulto difuso de uma calma ascensão sem pressa nem objectivo: paz, nem que apenas um vestígio inquantificável de paz, perdido na imensidão da eternidade ou talvez a própria eternidade. este pensamento deixou-o plenamente feliz. continuou estendido na cama, mesmo sem dar por isso.

na manhã seguinte, não se apercebeu de quando a empregada, pensando-o já fora de casa, no trabalho, irrompeu no seu quarto, de aspirador em riste, do estardalhaço que fez e de tudo o que se seguiu.

verdadeiramente, ele já tinha saído. deu consigo a atravessar a porta de casa, a rua e depois a porta do escritório e a do seu gabinete. pelo caminho foi distribuindo cumprimentos, mas ninguém lhe respondeu, mesmo os que se amontoavam, cochichando o incompreensível atraso, "logo o Marques, tão pontual", "que terá acontecido", "se calhar é melhor ligar-lhe" e um etc. de frases sem sentido.

acabado de se instalar, e como ninguém desse mostras de lhe notar a presença, apesar da atenção que todos concentravam nele, ou melhor, na sua (alegada) ausência, espantou os olhos para o tecto, num desabafo, "mas que raio se passa aqui". só então se lembrou do sonho de libertação da noite anterior e do fascínio invejoso que o mesmo lhe causara. calmamente, levantou-se, descontraiu os braços ao longo do corpo e começou a movimentá-los – afastar, encostar –, como os do corpo-sombra do sonho e, para seu espanto e felicidade, com idêntico resultado: uma leveza jamais experimentada, conduziu-o por ali acima, através do tecto do gabinete e de todos os tectos dos vinte andares acima do mesmo e, depois, do telhado do edifício; sem hiato, misturou-se na neblina cinzenta, depois azul e depois luz. e, envolto numa onda de paz, deixou de sentir e de pensar. mergulhou, apenas, no universo.






quinta-feira, 10 de junho de 2021

TENDERNESS


perco-me nos teus braços

a tua pele é a minha pele

o sol extinguiu-se há muito

a lua em seu lugar

chuva mansa afaga os vidros da janela

teus dedos o meu corpo

aconteceu na madrugada de vinte e seis de Agosto de 2020, não interessa se ao vivo ou em mero sonho, por vezes nem se conhece a diferença. guardei (em folha de papel) como guardo tantas palavras – coisas, já não. para criar registo? para mais tarde usar? sei lá!

hoje, dez de Junho de 2021, eram duas horas e quarenta e um minutos da madrugada, dei comigo a pensar: guardar "coisas" com a expectativa de as vir a usar não é criar bolsas de futuro, mas enfardar sacos de passado.

acabo de juntar aquelas e estas palavras, ou seja, usei dois pequenos sacos de passado. talvez tenha criado um pouco de futuro, pelo menos enquanto houver um leitor para isto.

 

perco-me nos teus braços

a tua pele é a minha pele

o sol extinguiu-se há muito

a lua em seu lugar

chuva mansa afaga os vidros da janela

teus dedos o meu corpo