sábado, 13 de julho de 2013

EU, ELES E A CONDUÇÃO


(Eles, aqui, são os portugueses, declarando-me eu, a maior parte das vezes, apátrida.)

Conduzir sempre foi uma das minhas paixões. Comecei com o triciclo, passei à bicicleta – onde experimentei as variantes sem mãos e sem pés, mas nunca sem dentes, embora sem joelhos, algumas vezes- e, finalmente, alcancei o carro. Pelo caminho foram ficando outras rodas do desejo, designadamente, uma ou outra trotinete e, mesmo, certos carrinhos de rolamentos.
Um dos meus primeiros actos de gestão financeira autónoma consistiu na contratação de aulas de condução automóvel. Obter a respectiva carta foi o máximo, muito melhor do que alcançar um qualquer título académico.
As perspectivas de compra de carro não eram imediatas. Faltava começar a trabalhar e ganhar para o luxo. Mas eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por conseguir.
Entretanto, um ou outro amigo mais condescendente deixou-me, ocasionalmente, praticar.
Foi assim que o pobre Maurício deve ter estado à beira dum ataque cardíaco (não que se tivesse queixado, mas eu bem vi o ar aterrado), quando eu ia enfiando o seu Dyane por uma porta dentro.
Ainda pensei comprar uma mota ou uma lambreta, mas isso ia restringir o leque de vestuário e, sobretudo, interferir, via capacete, com a compostura e, sobretudo, liberdade do cabelo. Ou então eram meras desculpas, o que verdadeiramente queria era um carro.
E lá chegou o dia de ir ao Stand da Citroen buscar o meu Dyane bege, novinho em folha. Grande coup de foudre!
Agora já só faltava conduzi-lo.
Acontece que tinham decorrido uns 2 anos desde o número mínimo de aulas de condução requeridas para o respectivo exame e os treinos entretanto efectuados não foram assim tantos.
Nada disso me impediu de meter mãos à obra, quer dizer, ao volante, e enfrentar, com enorme descontracção, as horas de maior movimento (justamente as de ida e regresso do trabalho).
Nos primeiros dias, não atinando muito bem com o ponto de embraiagem, deixava ir o carro abaixo com alguma frequência, o que, sobretudo àquelas horas, era motivo de forte indignação de condutores irritados e mal dormidos, que não se poupavam a orquestrar monumentais coros de buzinadelas. Nada que me incomodasse particularmente, pois tinha a certeza de que, em pouco tempo, o domínio da máquina seria absoluto.
E foi. Modéstia à parte, tornei-me uma exímia e segura condutora. E habitual.
Talvez por isso, não consigo compreender certos fenómenos que se observam na prática dos condutores portugueses, em alguns casos, sobretudo os homens (este destaque é mera decorrência estatística, não me movendo qualquer má vontade, antes pelo contrário).
Em primeiro lugar e em termos gerais, creio que o imaginário masculino ainda é dominado pelo mito de que o mundo da condução automóvel pertence ao respectivo domínio de exclusividade.
Basta pensar nas muitas anedotas e histórias que por aí pululam, em matéria de mulheres ao volante (aliás, algumas bem engraçadas...).
Para já não falar na interpretação por eles atribuída ao facto de os seguros do ramo automóvel preverem um desconto especial para condutoras. Confesso que, apesar de beneficiária, não fiquei particularmente agradada com a ideia; em resposta à minha interrogação, logo o Sr. Tavares, meu mediador de seguros, me acalmou, alegando que a benesse se devia ao facto das mulheres causarem menos acidentes (eu sabia que as Seguradoras não brincam em serviço, nem têm motivos para gozar connosco). Comentado o facto, a interpretação masculina não se fez esperar: - pois é, vocês conduzem tão devagar que é impossível causarem acidentes … (que, por mera hipótese, conduzíssemos melhor e/ou fossemos mais cautelosas, não entrava naquelas cabecinhas).
Mas isto é a espuma da questão.
O pertinente aprofundamento tem-me levado a admitir que alguns homens se comportam, em estrada, como se estivessem em verdadeiros campeonatos de demonstração/exibição de virilidade (mesmo entre eles…).
Já não vou falar nos critérios de escolha das viaturas, circunscrevo-me ao acto de condução.
Assim, entre as piores coisas que uma mulher pode fazer a certos homens, figuram, a) buzinar, porque eles vão a caracolar à nossa frente e nós estamos com pressa ou, pura e simplesmente, nos apetece acelerar; b) ultrapassá-los, por mais ordeira, sinalizada e regulamentar que seja a ultrapassagem.
Em qualquer destas circunstâncias (sobretudo, se cumulativas), a reacção mais esperável consiste numa forte aceleração, seguida de vertiginosa ultrapassagem reactiva, normalmente acompanhada de banda sonora, quando não gestual.
Por vezes, a fúria é tanta que completam as manobras com uma súbita e intensa redução de velocidade mesmo à nossa frente, numa demonstração inequívoca (julgam eles!) de que o poder e o domínio lhes pertencem e, como tal, podem fazer o que muito bem lhes apetece. Se isto resulta em chapas amolgadas, mortes ou ferimentos, não parece preocupá-los, o que se compreende, pois, nesse momento, a única coisa que os (des)orienta é a demonstração de poder (o poder do macho primitivo, entenda-se).
Nestes casos, vale-me ser boa condutora, conduzir com (quase) mais atenção à condução alheia do que à própria e, principalmente, possuir bons reflexos. Só assim tenho conseguido fazer umas (consequentes) travagens súbitas, mas controladas, de forma a não colidir com o energúmeno, mas também a evitar que o de trás colida comigo.
Todavia, confesso já ter ficado inúmeras vezes com o coração aos saltos, perante a antevisão da tragédia e, sobretudo, da estupidez.
Deixá-los distanciar é o meu lema, mas, mesmo assim, alguns não ficam satisfeitos, aparentando procurar despique, mas nessa nunca me vão apanhar.
Outro fenómeno muito interessante e racional, este comum a homens e mulheres, novos e velhos, consiste na utilização sistemática da faixa da esquerda, em andamento lento ou moderado.
Não creio tratar-se de mero desconhecimento duma elementar regra da condução, deverá haver uma razão mais profunda, com a qual, porém, não atino (talvez uma aplicação do princípio daqui não saio, daqui ninguém me tira).
Buzinar, fazer sinal de luzes, aproximações perigosas, etc. etc. não resulta. Continuam impassíveis, dando, as mais das vezes, a impressão dum total alheamento bovino.
Como segui-los, placidamente, ou chocar com eles (como nos carrinhos de feira, que apetece!) está completamente fora de questão, só há uma maneira de dar a volta: contorná-los e ultrapassá-los pela direita, obviamente em contravenção (sempre preferível a um ataque cardíaco ou de nervos), com imenso cuidado (pois pode acontecer guinarem subitamente contra nós) e ganhar distância, sem dar atenção às eventuais buzinadelas que, quando calha acordarem do sono bovino, disparam, em protesto contra a nossa falta.
Não desmerecendo a correcção e civismo das situações anteriores, outra de idêntico nível ocorre em alturas de grande e lenta fila de trânsito, em que, cansados do pára-arranca, certos condutores, compreensivelmente, demoram um pouco a retomar o andamento, após cada paragem. Compreensível e parvamente, diga-se, pois há sempre um chico-esperto (homem ou mulher) que, avançando lestamente na fila livre, apenas aguarda essa oportunidade para aproveitar a folga, sobretudo quando esta já se posiciona perto do ponto de desobstrução. Há quem não se importe, mas eu fico verde de indignação com tais demonstrações de oportunismo. Para oportunistas já nos bastam alguns políticos (e, sobretudo, ex-políticos). E certos amigos, claro.
Fenómeno oposto, mas igualmente agradável, verifica-se quando o trânsito entope e ficamos confinados a uma posição em que só a boa vontade dos camaradas de circulação nos pode salvar, v.g., quando, chegados a um cruzamento ou entroncamento apinhado, se nos depara uma barreira semi-andante, cada qual convencido de que o avanço lhe pertence em regime de exclusividade e, desgraçadamente, esperamos, esperamos e desesperamos, à espera da nossa hipotética oportunidade.
Posso gabar-me de ter encontrado a solução para tal caos, quer dizer, caso. Faço o meu ar de atrasadinha mental n.º 1 ou um sorriso glamoroso (consoante as circunstâncias), meto o braço de fora como quem pede esmola ou uma festa (consoante as circunstâncias) e pronto, já está. Posso orgulhar-me de conseguir êxito em cerca de 99,9% dos casos. Tiro e queda! E retribuo sempre com enormes sorrisos – parvos ou glamorosos – de agradecimento. Cai bem, revela educação e, na verdade, fico mesmo grata.
Normalmente, em casos idênticos, estando eu do outro lado, cedo passagem, mesmo sem me pedirem. Muitas vezes, aproveitam a gentileza como se fosse o estrito cumprimento dum dever. Nada de sorrisos ou agradecimentos. Não é bonito. Cai mal e revela rudeza.
Depois há o célebre fenómeno das buzinadelas, umas de agradecer, por serem de carácter preventivo, outras de aceitar humildemente, por serem de desespero ou censura por alguma distracção ou aselhice e, finalmente, outras de repudiar, por serem despropositadas e agressivas.
Já fui destinatária e já pratiquei de todos estes tipos, sendo por isso que, na matéria em causa, não posso declarar-me 100% apátrida, sendo, também, um  bocadinho portuguesa.
Agradeço as do primeiro tipo, desculpo-me perante as segundas e irrito-me perante as terceiras (a menos que esteja muito bem disposta).
Já quando sou eu a autora, costumo receber, respectivamente, irritação, irritação e irritação.
Acrescem, ainda, muitos outros fenómenos estranhos, mas, por hoje, chega.
Só adito que, apesar de todas estas interferências, o meu prazer de conduzir permanece intocado. 
 
 
 

JAPAN FOREVER!

 
Hoje foi dia de confluência de propostas, desde a inauguração duma exposição póstuma individual de pintura (de Vasco Costa, Paisagens Interiores, Galeria António Prates) até um espectáculo de música (Júlio Resende, pianista, e Gisela João, fadista),  integrado no festival Largos da Mouraria.
 
Todavia, o anúncio de Emperor entrou, inesperadamente, no meu campo de visão e o apelo sobrepôs-se a qualquer outro. 
 
É que Emperor, do realizador Peter Webber, é (mais) um filme que traz o Japão até nós e, dado o meu fascínio por este País, ir vê-lo revelou-se uma questão inadiável.
 
Passa-se no Japão, pouco depois do fim da 2ª Guerra Mundial, tendo por tema a tomada de decisão, pelos ocupantes americanos,  sobre se o Imperador Hirohito deveria ou não ser levado a julgamento, como criminoso de guerra. Entrelaçada, surge, em flashback, uma história de amor entre o general encarregado da investigação (destinada a fundamentar aquela decisão) e uma rapariga japonesa.
 
Não me parecendo excepcional (por momentos, o género em que se insere, dramático, resvala um pouco para o melodramático), ainda assim, considero-o um bom filme. Pelo testemunho cru da terrível destruição provocada pela guerra (é bom nunca esquecer...), pelo retrato das profundas diferenças culturais entre o Japão e o Ocidente, no caso representado pelos EUA, e pelas questões políticas suscitadas, nomeadamente, em termos de (pertença/distribuição de) responsabilidade pelos nefastos acontecimentos em causa (pese embora a superficialidade da abordagem).
 
Mas, para mim, existe uma outra razão particular, pela qual não poderia deixar de ver o filme, a rememoração, embora em pequenas doses, de paisagens que nunca me abandonam, tais como, os bosques de bambus, o inacessibilidade do Palácio Imperial, a sobriedade dos interiores japoneses e o fabuloso e enigmático Monte Fuji.
 

 

 
  
 
 
 
 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 10 de julho de 2013

O MOLESKINE DE JANETE (II)

(continuação)  

O rápido afastamento de Rita - que, em segundos, se perdera na linha do horizonte, reduzida ao tamanho dum lápis - deveu-se à urgência em encontrar os outros desertores, visto se aproximar a hora da partida.
Todos eles tinham ouvido falar dum país de misteriosos contornos e, embora ignorassem exactamente quais ou, talvez, por isso, ansiavam conhecê-lo.
A chegada de Rita ditou a antecipação da viagem.
As mochilas, reduzidas à mínima expressão do essencial, não atrapalharam a subida para as Harley Davidson e as posteriores acelerações, que, passado o impulso inicial, se revelaram desnecessárias, porquanto uma inusitada e poderosa força os sugou para o local de destino, privando-os da deliciosa sensação de velocidade em crescimento.
Tudo sucedera como se um ténue véu se tivesse rasgado para os deixar passar, ou melhor, para os reclamar à presença dum qualquer interior desconhecido.
Perplexos, mas excitados pela curiosidade, estacionaram as motos, dispostos a iniciar o percurso da descoberta.
Só então procederam às apresentações, distribuindo entre si os cumprimentos próprios da ocasião e as informações básicas. Miguel, 45 anos, informático de profissão, e pintor, nas horas vagas; Janete, 25 anos, estudante universitária de Engenharia Informática; Rita, 28 anos, jornalista frelance.
Rita afastou-se um pouco, para enviar o prometido SMS a Francisco, mas reparou que o telemóvel se apagara por completo, resistindo herculeamente a todas as tentativas de reanimação, o que lhe gerou angústia, pois, bem sabendo o estado em que deixara o namorado, desejava o mais possível começar a levantar o véu da sua tão repentina quanto absurda despedida.
Solícitos, os companheiros apressaram-se a ajudá-la, mas os seus telemóveis, também atingidos por morte súbita, recusaram-se a cooperar.
Uma coisa parecia já certa, aquele não era um local propício à existência ou, pelo menos, ao funcionamento de telemóveis.
Encontravam-se, agora, num campo aberto, dominado por esguias plantas filiformes, que, por qualquer razão incompreensível, pareciam observá-los.
Não vislumbravam qualquer pessoa nem conseguiam desvendar o que o horizonte longínquo escondia.
Apenas sentiam uma fresca aragem e o toque duma luz pálida, indefinida, insusceptível de revelar se iria tombar noite ou emergir dia.
Dominados por estranha apreensão, entreolharam-se, em mudas interrogações, que não ousaram verbalizar e, como se fruto dum acordo tácito, puseram-se em marcha, todos na mesma direcção.
Não havendo sinalização alguma, o seu caminho era cego, mas, de algum modo, já todos eles tinham experimentado essa ausência nas vidas de que provinham. Tal como os passos, também os pensamentos se articularam em perfeita sintonia, levando-os a comunicar telepaticamente.
Deste modo, sem necessidade de formular perguntas, Rita ficou a saber que Miguel e Janete estavam perdidamente apaixonados e estes entenderam o motivo da partida de Rita, compreendendo, assim, que a verdadeira razão das suas deserções, não sendo idêntica, também não era, necessariamente, antagónica. Afinal, Miguel e Janete apenas queriam perder-se, enquanto Rita almejava encontrar-se.
Quanto mais caminhavam, mais longínquo parecia o horizonte e mais indefinida a linha que o separava do céu. Estranhamente, isso não os preocupava, visto não sentirem cansaço, fome, frio, falta de abrigo ou qualquer outra dependência inerente ao primarismo da sua natureza originária.
Nova coisa parecia já certa, aquele não era um local em que a sobrevivência fosse um fardo, evoluía-se e era tudo.
Subitamente escureceu e, tal como os seus lábios haviam sido dispensados de comunicar, assim os seus olhos foram dispensados de ver, com a naturalidade da imersão duma alma lisa num sono profundo, em cujas asas se deixaram transportar para a terra de todos e de ninguém, que é o enigmático mundo dos sonhos.
 
(Nota: Prevê-se continuar; de momento ignora-se como)
 
 
 

terça-feira, 9 de julho de 2013

ESTADO DA NAÇÃO!

Verdadeiro paradigma do estado da Nação, esta


 
De áurea já só tem o nome (e as instituições bancárias que por lá proliferam), como testemunha esta fotorreportagem, feita em 8 de Fevereiro passado (nada indica que agora esteja melhor).


  
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

  
  
 
 
 




 
 
 
  
 
 
 Enfim, um verdadeiro buraco!
 
 
 

 
 
 
 
 

sexta-feira, 5 de julho de 2013

O MOLESKINE DE JANETE


ESCLARECIMENTO PRÉVIO
A narrativa que segue parte dum facto real, o achamento dum caderno de desenho de capa preta, com a inscrição do nome Janete, desenhos de uma tal Rita e uma citação que, via Google, o achador concluiu tratar-se, nada mais, nada menos, que do Conde Drácula.
A quem pertencerá o caderno? À Janete? A alguém que gosta muito da Janete? Como devolvê-lo? Eis, basicamente, as perguntas que aquele se colocou, na página de Facebook dum grupo fechado (de arte), ao qual pertenço.
Um outro elemento do grupo comentou, e bem, que a história daria um excelente ponto de partida para um argumento cinematográfico.
Eu adiantei-me, anunciando que pegaria na ideia.
Um outro – único que conheço – instigou-nos a avançar.
Foi o que empreendi, não na modalidade de argumento cinematográfico, que nem imagino como se faça, mas através da narrativa que segue, totalmente ficcionada, à excepção do facto de que parte.
Assim, para além deste, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência, ao que acresce não ter pontos de contacto com um registo auto biográfico. 
O MOLESKINE DE JANETE (I) 
Sucedeu em 23 de Junho de 2013. Calor abrasador, 35º à sombra. O asfalto derretia sob os ténis de Francisco, não havia memória duma coisa assim. Talvez em New York, mas não se tratava de New York.
A cidade era outra, imersa num sono de despovoamento, muitos tinham emigrado, não propriamente por causa do calor, pois já em anos anteriores se acumulavam no aeroporto, debandada sem precedentes, como se fugissem duma ameaça de peste ou do vírus H7N9, vulgarmente conhecido por gripe das aves. Mas também não era isso.
Francisco era dos poucos que sobravam. A cidade pertencia-lhe quase exclusivamente. Que seria feito dos seus amigos? Já só restavam dois, João e Diogo.
Naquele dia, seguia só, enfiado numas velhas jeans e numa t-shirt cinzenta, que lhe pesavam como cobertores de lã. O modo como se movia nem parecia humano, quase poderia dizer-se que rastejava, vergado pelo absurdo peso do calor. Era alto e magro, de rosto quadrado, bem esculpido, cabelo escuro, desordenado, e uns olhos azuis que agora tinham perdido o brilho, não porque fosse velho, apenas 32 anos, mas porque dava mostras de sucumbir à lassidão da cidade, que parecia ferver em lume brando.
Havia cerca de três meses, a namorada, Rita, tinha partido com um grupo de desertores e limitara-se a dizer-lhe, poucas horas antes, em jeito telegráfico:
- Francisco, vou-me embora, não te convido porque sei que não queres vir.
Estupefacto, Francisco metralhou:
- O quê? Com quem? Como? Para onde?
- Só sei que vou, parto amanhã e, quando chegar ao destino, mando-te um SMS. Aí, talvez já saiba mais pormenores, respondeu Rita, com um sorriso sonso.
- Não pode ser. Deves estar a gozar comigo, só podes mesmo estar a gozar comigo. Então e os dois anos juntos, os projectos em comum? Estás definitivamente a gozar comigo ou então arranjaste outro. De certeza que arranjaste outro. Confessa!
- Lamento, mas é assim como te acabei de dizer, não vale a pena inventares outro. Talvez volte um dia. Estás disposto a esperar por mim?
Francisco não podia acreditar no que ouvia, tinha os miolos a ferver, os olhos raiados de fúria, os lábios trémulos e não conseguia articular mais nenhum som.
Ela aproximou-se, fez-lhe uma festa no cabelo, olhou-o com dissimulada ternura, e disse-lhe:
- Olha, querido, tem calma, um dia destes voltamos a cruzar-nos e aí vais perceber, okey?
- Uma ova é que vou perceber, eu quero perceber é já, IMEDIATAMENTE! Senão sou eu que te abandono, entendes? E nem se apercebeu do ridículo do que acabara de dizer...
Mas ela já tinha virado costas, com um encolher de ombros, tão rapidamente que, em segundos, se perdia na linha do horizonte, reduzida ao tamanho dum lápis.
Não é que Francisco estivesse verdadeiramente apaixonado por Rita, a rotina de dois anos conduzira as coisas ao estado a que costuma conduzir, mas, que diabo, tinha a vida organizada, partilhava casa com ela, dividiam as despesas e nem sequer estava em fase de atracção, muito menos fatal, por qualquer outra.
Por isso e, sobretudo, por ter sido abandonado, para cúmulo, sem saber porquê, ficou completamente de rastos. Sentiu-se traído, humilhado, feito parvo e, o pior, gozado. Sim, ela só podia ter andado a gozar com ele. Aquele tempo todo. Grande cabra, tinha-se era pirado com outro.
Naquele dia 23 de Junho de 2013, Francisco ainda pensava em Rita - de quem não tinha chegado a receber nenhum SMS -, não tanto por sentir a sua falta, mas por se sentir sufocado pelo enigma que ela criara. Afinal, com quem teria ela partido, para onde, porquê, interrogava-se. E não diminuíra nele a ânsia de retaliação, que, aliás, o fazia lançar um olhar desconfiado, agressivo, até, sobre as mulheres, particularmente, as que lhe agradavam.
Todavia, aquele ensurdecedor calor era, de momento, a prioridade do seu desconforto.
Arrastava-se, assim, em direcção a casa, onde pensava mergulhar numa banheira de água fria durante tanto tempo quanto o necessário para refrescar o corpo e esfriar a mente.
Ao passar por um estação do comboio suburbano, cabisbaixo como seguia, fixou a atenção no chão, atraído por um objecto negro, de formato rectangular, que, uma vez nas suas mãos, se revelou ser um caderno Moleskine, formato A5, papel liso, que se apressou a folhear, deparando com uns interessantes desenhos duma tal Rita e a inscrição do nome Janete, tendo concluído que se tratava de pertença desta, quem quer que ela fosse, ou de alguém que dela gostava muito.
Todavia, o que mais o intrigou foi a seguinte citação: O desespero tem suas formas próprias de trazer a calma.
Quem seria Janete, Rita e o(a) dono(a) do caderno? E o autor da inscrição?
Como que fustigado por uma onda de adrenalina, Francisco endireitou-se, estugou o passo e dirigiu-se a casa, numa urgência súbita de desvendar o enigma do Moleskine.
Adiando o mergulho na banheira, dirigiu-se ao PC, ligou-se à rede e, rapidamente, descobriu, via Google, que a citação era, nada mais, nada menos, que do Conde Drácula(de Bram Stoker).
De posse deste novo e intrigante elemento, publicou o anúncio do achamento na página de Facebook dum grupo fechado, de arte, a que pertencia, com o intuito de encontrar o(a) dono(a) do Moleskine.
Só de seguida se enfiou na banheira, após ter deixado a roupa espalhada pelo chão da casa de banho.
Tinha, agora, coisas novas em que pensar e mais um enigma a deslindar, por sinal, bem mais apelativo do que o do desaparecimento de Rita.
(Nota: Prevê-se continuar; de momento, ignora-se como)
 
 

terça-feira, 2 de julho de 2013

BEM VISTO!


Há dias, ao passar pela Marginal, descobri, via cartaz, que um dos candidatos às próximas eleições autárquicas tem por alcunha ou subnome ISALTINO OEIRAS (apelido, MAIS À FRENTE) e, por lema, CONTINUAR A FAZER.
 
O nome, propriamente dito, não fixei, mas bem VISTAS as coisas, NÃO FARÁ GRANDE DIFERENÇA, pois suspeito haver ali um qualquer distúrbio de identidade (ou, inclusive, o seu oposto) e, para além do mais, não voto em Oeiras.
 
(Está bem, isto parece mais um tweet, mas estou com pressa de chegar aos 100 posts, para festejar!)
 
 
 
 
 

segunda-feira, 1 de julho de 2013

THE SILLY SWAP FESTIVAL

 
 
É sabido que estamos em plena época de festivais ao ar livre e, já agora, que a silly season está mesmo ao virar da esquina.
 
A oportunidade para mais um silly festival não podia, pois, ser desperdiçada, o FESTIVAL SWAP, em que, amavelmente, se pretende dar música a este manso povo, com uma célebre banda, manhosamente conduzida por suas excelências os ministros das finanças do ex e do actual (des)governos, tudo sob o alto patrocínio dos principais partidos do "arco governativo".
 
Primeiro, tivemos direito a um processo muito interessante de ensaios.
 
Se bem me recordo, tudo começou com a demissão dum secretário de estado, não se sabia muito bem porquê, mas, veio a saber-se, porque, enquanto gestor público, terá alinhado na celebração duns contratos muito arriscados com a Banca (sempre a Banca...), em que, caso as taxas de juro baixassem, enormérrimos prejuízos adviriam para o Estado (sempre o Estado...).
 
Não me perguntem mais pormenores, pois não sou especialista nesta área e só me fixei nos milhões ou biliões ou triliões de euros, whatever it is, que, como portuguesa, seria chamada a pagar, certamente, em nome daqueles gestores públicos e respectivos tutores.
 
Depois, em doses bem calculadas, foi-se sabendo que o tal ex-secretário de estado não era o único (aqui, com acompanhamento da música, "não, não sou o único..."), e sucedeu-se uma quantidade de gestores, ex-gestores e contratos SWAP, chegando a rede, alegadamente, à própria secretária de estado do tesouro actual.
 
Pelo caminho, lembro-me de ter ouvido o primeiro ministro afirmar qualquer coisa do tipo, que esperava que os responsáveis assumissem as suas responsabilidades e se demitissem.
 
Achei esta afirmação deveras interessante, sobretudo considerando o facto das  empresas públicas se encontrarem sob tutela do Estado e de, neste País, inexistir o (saudável) hábito da prestação de contas  ( accountability) e, habitualmente, a Justiça não só tardar como falhar (v., a título de exemplo, caso BPN; no caso Freeport ficámos a saber, salvo erro 5 anos depois, que o processo fora arquivado sem que o eventual suspeito que, afinal, não o era, tenha sido ouvido, por alegada falta de tempo).
 
Entretando, deixei de seguir os ensaios, pois o barulho estava a tornar-se demasiado ensurdecedor e certos silêncios, ainda mais.
 
Eis senão quando sobe ao palco o ex-ministro das Finanças para afirmar que, em 2011, quando da transição de (des)governos, o seu sucessor tinha sido adequada e detalhadamente informado sobre a situação, o que, de imediato, foi desmentido por alguém do presente (des)governo (já nem sei quem) .
 
Neste ponto, apetece-me exclamar, - DAAH
 
Em resumo e conclusão: o anterior MF, responsável último pela situação, ao menos em termos políticos, atira as culpas  de dois anos de inacção para o actual, como se isso o isentasse da suposta culpa originária; o actual poder des(governativo), a ser verdade que conhecia a situação desde 2011 - vá-se lá saber, eles que se entendam -,  assobia para o lado, usa a informação quando lhe convém e descarta as responsabilidades todas no anterior; finalmente, nós, portugueses, não só somos indecentemente aldrabados, como pagaremos a factura, custe o que custar. 
 
Entretanto, não faltarão debates a discutir de quem é a culpa, enquanto o essencial passa à margem.
 
Dividir para reinar (neste caso, para baralhar e isentar de responsabilidades) sempre se revelou uma magnífica receita. Assim haja quem se deixe levar. E há!
 
E é isto, o verdadeiro SILLY SWAP FESTIVAL!