(Eles, aqui, são os portugueses, declarando-me eu, a maior parte das
vezes, apátrida.)
Conduzir sempre foi uma das
minhas paixões. Comecei com o triciclo, passei à bicicleta – onde experimentei
as variantes sem mãos e sem pés, mas nunca sem dentes, embora sem
joelhos, algumas vezes- e, finalmente, alcancei o carro. Pelo caminho foram
ficando outras rodas do desejo,
designadamente, uma ou outra trotinete e, mesmo, certos carrinhos de
rolamentos.
Um dos meus primeiros actos de
gestão financeira autónoma consistiu na contratação de aulas de condução
automóvel. Obter a respectiva carta foi o máximo, muito melhor do que alcançar
um qualquer título académico.
As perspectivas de compra de
carro não eram imediatas. Faltava começar a trabalhar e ganhar para o luxo. Mas
eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria por conseguir.
Entretanto, um ou outro amigo mais
condescendente deixou-me, ocasionalmente, praticar.
Foi assim que o pobre Maurício
deve ter estado à beira dum ataque cardíaco (não que se tivesse queixado, mas
eu bem vi o ar aterrado), quando eu ia enfiando o seu Dyane por uma porta dentro.
Ainda pensei comprar uma mota ou
uma lambreta, mas isso ia restringir o leque de vestuário e, sobretudo,
interferir, via capacete, com a compostura e, sobretudo, liberdade do cabelo.
Ou então eram meras desculpas, o que verdadeiramente queria era um carro.
E lá chegou o dia de ir ao Stand da Citroen buscar o meu Dyane
bege, novinho em folha. Grande coup de
foudre!
Agora já só faltava conduzi-lo.
Acontece que tinham decorrido uns
2 anos desde o número mínimo de aulas de condução requeridas para o respectivo
exame e os treinos entretanto efectuados não foram assim tantos.
Nada disso me impediu de meter
mãos à obra, quer dizer, ao volante, e enfrentar, com enorme descontracção, as
horas de maior movimento (justamente as de ida e regresso do trabalho).
Nos primeiros dias, não atinando
muito bem com o ponto de embraiagem, deixava ir o carro abaixo com alguma
frequência, o que, sobretudo àquelas horas, era motivo de forte indignação de
condutores irritados e mal dormidos, que não se poupavam a orquestrar
monumentais coros de buzinadelas. Nada que me incomodasse particularmente, pois
tinha a certeza de que, em pouco tempo, o domínio da máquina seria absoluto.
E foi. Modéstia à parte,
tornei-me uma exímia e segura condutora. E habitual.
Talvez por isso, não consigo
compreender certos fenómenos que se observam na prática dos condutores
portugueses, em alguns casos, sobretudo os homens (este destaque é mera decorrência estatística, não me movendo qualquer
má vontade, antes pelo contrário).
Em primeiro lugar e em termos gerais, creio que o
imaginário masculino ainda é dominado pelo mito de que o mundo da condução
automóvel pertence ao respectivo domínio de exclusividade.
Basta pensar nas muitas anedotas
e histórias que por aí pululam, em matéria de mulheres ao volante (aliás, algumas bem engraçadas...).
Para já não falar na
interpretação por eles atribuída ao
facto de os seguros do ramo automóvel preverem um desconto especial para
condutoras. Confesso que, apesar de beneficiária, não fiquei particularmente
agradada com a ideia; em resposta à minha interrogação, logo o Sr. Tavares, meu
mediador de seguros, me acalmou, alegando que a benesse se devia ao facto das
mulheres causarem menos acidentes (eu sabia que as Seguradoras não brincam em
serviço, nem têm motivos para gozar connosco). Comentado o facto, a interpretação
masculina não se fez esperar: - pois é, vocês conduzem tão devagar que é
impossível causarem acidentes … (que, por mera hipótese, conduzíssemos melhor
e/ou fossemos mais cautelosas, não entrava naquelas cabecinhas).
Mas isto é a espuma da questão.
O pertinente aprofundamento tem-me
levado a admitir que alguns homens se comportam, em estrada, como se estivessem em verdadeiros campeonatos de demonstração/exibição
de virilidade (mesmo entre eles…).
Já não vou falar nos critérios de
escolha das viaturas, circunscrevo-me ao acto de condução.
Assim, entre as piores coisas que
uma mulher pode fazer a certos homens, figuram, a) buzinar, porque eles vão a caracolar à nossa frente e nós estamos
com pressa ou, pura e simplesmente, nos apetece acelerar; b) ultrapassá-los, por
mais ordeira, sinalizada e regulamentar que seja a ultrapassagem.
Em qualquer destas circunstâncias
(sobretudo, se cumulativas), a reacção mais esperável consiste numa forte
aceleração, seguida de vertiginosa ultrapassagem reactiva, normalmente acompanhada
de banda sonora, quando não gestual.
Por vezes, a fúria é tanta que
completam as manobras com uma súbita e intensa redução de velocidade mesmo à
nossa frente, numa demonstração inequívoca (julgam eles!) de que o poder e o
domínio lhes pertencem e, como tal, podem fazer o que muito bem lhes apetece.
Se isto resulta em chapas amolgadas, mortes ou ferimentos, não
parece preocupá-los, o que se compreende, pois, nesse momento, a única coisa
que os (des)orienta é a demonstração de poder (o poder do macho primitivo, entenda-se).
Nestes casos, vale-me
ser boa condutora, conduzir com (quase) mais atenção à condução alheia do que
à própria e, principalmente, possuir bons reflexos. Só assim tenho conseguido
fazer umas (consequentes) travagens súbitas, mas controladas, de forma a não
colidir com o energúmeno, mas também a evitar que o de trás colida comigo.
Todavia, confesso já ter ficado
inúmeras vezes com o coração aos saltos, perante a antevisão da tragédia e,
sobretudo, da estupidez.
Deixá-los distanciar é o meu
lema, mas, mesmo assim, alguns não ficam satisfeitos, aparentando
procurar despique, mas nessa nunca me vão apanhar.
Outro fenómeno muito interessante
e racional, este comum a homens e mulheres, novos e velhos, consiste na utilização
sistemática da faixa da esquerda, em andamento lento ou moderado.
Não creio tratar-se de mero desconhecimento
duma elementar regra da condução, deverá haver uma razão mais profunda, com a
qual, porém, não atino (talvez uma aplicação do princípio daqui não saio,
daqui ninguém me tira).
Buzinar, fazer sinal de luzes,
aproximações perigosas, etc. etc. não resulta. Continuam impassíveis,
dando, as mais das vezes, a impressão dum total alheamento bovino.
Como segui-los, placidamente, ou
chocar com eles (como nos carrinhos de feira, que apetece!) está completamente
fora de questão, só há uma maneira de dar a volta: contorná-los e
ultrapassá-los pela direita, obviamente em contravenção (sempre preferível a um
ataque cardíaco ou de nervos), com imenso cuidado (pois pode acontecer guinarem
subitamente contra nós) e ganhar distância, sem dar atenção às eventuais
buzinadelas que, quando calha acordarem do sono bovino, disparam, em
protesto contra a nossa falta.
Não desmerecendo a correcção e
civismo das situações anteriores, outra de idêntico nível ocorre em alturas
de grande e lenta fila de trânsito, em que, cansados do pára-arranca, certos
condutores, compreensivelmente, demoram um pouco a retomar o andamento, após
cada paragem. Compreensível e parvamente, diga-se, pois há sempre um
chico-esperto (homem ou mulher) que, avançando lestamente na
fila livre, apenas aguarda essa oportunidade para aproveitar a folga, sobretudo
quando esta já se posiciona perto do ponto de desobstrução. Há quem não se importe,
mas eu fico verde de indignação com tais demonstrações de oportunismo. Para
oportunistas já nos bastam alguns políticos (e, sobretudo, ex-políticos). E
certos amigos, claro.
Fenómeno oposto, mas igualmente
agradável, verifica-se quando o trânsito entope
e ficamos confinados a uma posição em que só a boa vontade dos camaradas de
circulação nos pode salvar, v.g., quando, chegados a um cruzamento ou
entroncamento apinhado, se nos depara uma barreira semi-andante, cada qual convencido de que o avanço lhe pertence em regime
de exclusividade e, desgraçadamente, esperamos, esperamos e desesperamos, à
espera da nossa hipotética oportunidade.
Posso gabar-me de ter encontrado
a solução para tal caos, quer dizer, caso. Faço o meu ar de atrasadinha mental
n.º 1 ou um sorriso glamoroso (consoante as circunstâncias), meto o braço de
fora como quem pede esmola ou uma festa (consoante as circunstâncias) e pronto,
já está. Posso orgulhar-me de conseguir êxito em cerca de 99,9% dos
casos. Tiro e queda! E retribuo sempre com enormes sorrisos – parvos ou glamorosos
– de agradecimento. Cai bem, revela educação e, na verdade, fico mesmo grata.
Normalmente, em casos idênticos,
estando eu do outro lado, cedo passagem, mesmo sem me pedirem. Muitas vezes,
aproveitam a gentileza como se fosse o estrito cumprimento dum dever.
Nada de sorrisos ou agradecimentos. Não é bonito. Cai mal e revela rudeza.
Depois há o célebre fenómeno das
buzinadelas, umas de agradecer, por serem de carácter preventivo, outras de
aceitar humildemente, por serem de desespero ou censura por alguma distracção
ou aselhice e, finalmente, outras de repudiar, por serem despropositadas e
agressivas.
Já fui destinatária e já
pratiquei de todos estes tipos, sendo por isso que, na matéria em causa, não
posso declarar-me 100% apátrida, sendo, também, um bocadinho portuguesa.
Agradeço as do primeiro tipo,
desculpo-me perante as segundas e irrito-me perante as terceiras (a menos que
esteja muito bem disposta).
Já quando sou eu a autora,
costumo receber, respectivamente, irritação, irritação e irritação.
Acrescem, ainda, muitos outros
fenómenos estranhos, mas, por hoje, chega.
Só adito que, apesar de todas
estas interferências, o meu prazer de
conduzir permanece intocado.
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