ESCLARECIMENTO
PRÉVIO
A narrativa que segue parte dum facto real, o
achamento dum caderno de desenho de capa preta, com a inscrição do nome Janete,
desenhos de uma tal Rita e uma citação que, via Google, o achador concluiu
tratar-se, nada mais, nada menos, que do Conde Drácula.
A quem pertencerá o caderno? À Janete? A alguém que
gosta muito da Janete? Como devolvê-lo? Eis, basicamente, as perguntas que
aquele se colocou, na página de Facebook
dum grupo fechado (de arte), ao qual
pertenço.
Um outro elemento do grupo comentou, e bem, que a
história daria um excelente ponto de partida para um argumento
cinematográfico.
Eu adiantei-me, anunciando que pegaria na ideia.
Um outro – único que conheço – instigou-nos a avançar.
Foi o que empreendi, não na modalidade de argumento
cinematográfico, que nem imagino como se faça, mas através da narrativa que
segue, totalmente ficcionada, à excepção do facto de que parte.
Assim, para além deste, qualquer semelhança com a
realidade é mera coincidência, ao que acresce não ter pontos de contacto com um registo
auto biográfico.
O MOLESKINE
DE JANETE (I)
Sucedeu em 23 de Junho de 2013. Calor abrasador, 35º à
sombra. O asfalto derretia sob os ténis de Francisco, não havia memória duma
coisa assim. Talvez em New York, mas não se tratava de New York.
A cidade era outra, imersa num sono de despovoamento,
muitos tinham emigrado, não propriamente por causa do calor, pois já em anos
anteriores se acumulavam no aeroporto, debandada sem precedentes, como se
fugissem duma ameaça de peste ou do vírus H7N9, vulgarmente conhecido por gripe
das aves. Mas também não era isso.
Francisco era dos poucos que sobravam. A cidade
pertencia-lhe quase exclusivamente. Que seria feito dos seus amigos? Já só
restavam dois, João e Diogo.
Naquele dia, seguia só, enfiado numas velhas jeans e numa t-shirt cinzenta, que lhe pesavam como cobertores de lã. O modo
como se movia nem parecia humano, quase poderia dizer-se que rastejava, vergado
pelo absurdo peso do calor. Era alto e magro, de rosto quadrado, bem esculpido,
cabelo escuro, desordenado, e uns olhos azuis que agora tinham perdido o brilho,
não porque fosse velho, apenas 32 anos, mas porque dava mostras de sucumbir à
lassidão da cidade, que parecia ferver em lume brando.
Havia cerca de três meses, a namorada, Rita, tinha
partido com um grupo de desertores e limitara-se a dizer-lhe, poucas horas
antes, em jeito telegráfico:
- Francisco, vou-me embora, não te convido porque sei
que não queres vir.
Estupefacto, Francisco metralhou:
- O quê? Com quem? Como? Para onde?
- Só sei que vou, parto amanhã e, quando chegar ao
destino, mando-te um SMS. Aí, talvez já saiba mais pormenores, respondeu Rita,
com um sorriso sonso.
- Não pode ser. Deves estar a gozar comigo, só podes
mesmo estar a gozar comigo. Então e os dois anos juntos, os projectos em comum?
Estás definitivamente a gozar comigo ou então arranjaste outro. De certeza que
arranjaste outro. Confessa!
- Lamento, mas é assim como te acabei de dizer, não
vale a pena inventares outro. Talvez volte um dia. Estás disposto a esperar por
mim?
Francisco não podia acreditar no que ouvia, tinha os
miolos a ferver, os olhos raiados de fúria, os lábios trémulos e não conseguia
articular mais nenhum som.
Ela aproximou-se, fez-lhe uma festa no cabelo, olhou-o
com dissimulada ternura, e disse-lhe:
- Olha, querido, tem calma, um dia destes voltamos a
cruzar-nos e aí vais perceber, okey?
- Uma ova é que vou perceber, eu quero perceber é já,
IMEDIATAMENTE! Senão sou eu que te abandono, entendes? E nem se apercebeu do
ridículo do que acabara de dizer...
Mas ela já tinha virado costas, com um encolher de ombros, tão rapidamente que, em segundos, se perdia na linha do horizonte, reduzida ao tamanho dum lápis.
Não é que Francisco estivesse verdadeiramente
apaixonado por Rita, a rotina de dois anos conduzira as coisas ao estado a que
costuma conduzir, mas, que diabo, tinha a vida organizada, partilhava casa com
ela, dividiam as despesas e nem sequer estava em fase de atracção, muito menos
fatal, por qualquer outra.
Por isso e, sobretudo, por ter sido abandonado, para
cúmulo, sem saber porquê, ficou completamente de rastos. Sentiu-se traído,
humilhado, feito parvo e, o pior, gozado. Sim, ela só podia ter andado a gozar
com ele. Aquele tempo todo. Grande cabra, tinha-se era pirado com outro.
Naquele dia 23 de Junho de 2013, Francisco ainda
pensava em Rita - de quem não tinha chegado a receber nenhum SMS -, não tanto por
sentir a sua falta, mas por se sentir sufocado pelo enigma que ela criara.
Afinal, com quem teria ela partido, para onde, porquê, interrogava-se. E não
diminuíra nele a ânsia de retaliação, que, aliás, o fazia lançar um olhar
desconfiado, agressivo, até, sobre as mulheres, particularmente, as que lhe
agradavam.
Todavia, aquele ensurdecedor calor era, de momento, a
prioridade do seu desconforto.
Arrastava-se, assim, em direcção a casa, onde pensava
mergulhar numa banheira de água fria durante tanto tempo quanto o necessário
para refrescar o corpo e esfriar a mente.
Ao passar por um estação do comboio suburbano, cabisbaixo
como seguia, fixou a atenção no chão, atraído por um objecto negro, de formato
rectangular, que, uma vez nas suas mãos, se revelou ser um caderno Moleskine, formato A5, papel liso, que
se apressou a folhear, deparando com uns interessantes desenhos duma tal Rita e
a inscrição do nome Janete, tendo concluído que se tratava de pertença desta, quem
quer que ela fosse, ou de alguém que dela gostava muito.
Todavia, o que mais o intrigou foi a seguinte citação:
O
desespero tem suas formas próprias de trazer a calma.
Quem seria Janete, Rita e o(a) dono(a) do caderno? E o
autor da inscrição?
Como que fustigado por uma onda de adrenalina,
Francisco endireitou-se, estugou o passo e dirigiu-se a casa, numa urgência
súbita de desvendar o enigma do Moleskine.
Adiando o mergulho na banheira, dirigiu-se ao PC,
ligou-se à rede e, rapidamente, descobriu, via Google, que a citação era, nada mais, nada menos, que do Conde Drácula(de Bram Stoker).
De posse deste novo e intrigante elemento, publicou o
anúncio do achamento na página de Facebook
dum grupo fechado, de arte, a que pertencia, com o intuito de encontrar o(a)
dono(a) do Moleskine.
Só de seguida se enfiou na banheira, após ter deixado
a roupa espalhada pelo chão da casa de banho.
Tinha, agora, coisas novas em que pensar e mais um
enigma a deslindar, por sinal, bem mais apelativo do que o do desaparecimento
de Rita.
(Nota: Prevê-se continuar; de momento, ignora-se como)
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