então resolveste seguir por aquela estrada que se desdobrava em infindos quilómetros, o carro evoluía a uma velocidade razoavelmente elevada e constante e a tua atenção prendia-se nos lados dos quilómetros, sempre mais e mais quilómetros, que, embora tragados pela monotonia do motor, pareciam repetir-se numa sucessão de infinitos. aparências, como bem sabias, sabes.
os lados espalhavam-se, planícies de verde musgo colado, desenhadas em formas estranhas, arredondadas, como se corpos adormecidos se lhes escondessem por baixo, não todo o volume de corpos adormecidos, mas a saliência de partes soltas de corpos adormecidos, talvez abandonados, é isso, abandonados, perdidos de há séculos de abandono. que se esbatiam - as planícies - ao fundo, lá muito ao fundo, longe, na fuligem intervalada de verde de montanhas cujas bocas bem poderiam ter sido as desamorosas mães daqueles submersos corpos arredondados.
continuavas a olhar, os teus olhos, o fascínio dos teus olhos, desabituados desta espécie de assombro trazido pela diferença, sempre à espera de ver aqueles corpos levantarem-se, o musgo rasteiro a elevar-se como cabelo cortado à escovinha, depois um ombro feito de lava, uma mão nos seus cinco dedos retorcidos e uma boca gritando surdamente à tua passagem, à passagem do carro, como quem pede boleia, tirem-me daqui, levem-me para onde possa reconhecer-me, saber donde vim, esquecer-me desta prisão de séculos e sepultura.
era assim aquela terra, a terra estendida nas bordas dos quilómetros infindáveis.
na verdade, era um lugar desalmado, no estrito sentido de não se vislumbrar que fosse ocupado, sequer, por uma única alma, alma de gente, entenda-se. e, no entanto, era um lugar com alma, com a animação própria da sobriedade, da estranheza e da imponência de certos elementos. e sempre poderá dizer-se que havia por lá umas alminhas, mas habitavam ovelhas, agrupadas em peludos montículos brancos, muito rechonchudas, por vezes misturava-se uma ovelha negra ou uma cabra, também negra, e todas por lá andavam, entretidas, a olhar o pasto musgo com os dentes leitosos, indiferentes a ti e ao carro em que te transportavas, te transportavam. e também havia uns pequenos grupos de vacas e outros de cavalos, todos fazendo o mesmo, mordendo a verdura com os olhos, ou então, talvez saciados dessa fome, encostando os focinhos num jeito que só podia ser de beijo ou, talvez cansados do amor, deitando-se de lado, com os dentes mordendo o céu, carregado de nuvens ricas de cinzento e de formas caprichosas, que caminhavam empurradas pelo vento constante. Talvez mordessem o vento, também.
não paravas de olhar e absorver a paisagem repetida mas cambiante - porque, num repente, a fuligem das colinas longínquas elevava-se em formas mais estranhas ou escurecia num tom diferente ou então brilhava de branco, já não era noite, era luz, e porque, num repente, um braço de água viva atravessava a planície e prometia uma frescura que negava aquela cinza e aquelas formas adormecidas sob os lados dos quilómetros. não paravas de olhar e absorver a paisagem desigual, poderosa e, como tal, neutra, enquanto outros conversavam ou conversavam e riam, ou dormiam (um chegou, mesmo, a ressonar).
esses seguiam contigo, no carro grande, que parecia vomitar quilómetros, em vez de os engolir, sempre mais e mais e mais, e mais um grupinho de ovelhas saciadas e outro de vacas saciadas e, ainda, outro de cavalos saciados e ninguém, absolutamente ninguém, nenhuma pessoa. todos esses seres entregues à natureza, por sua conta e risco, nos seus pequenos grupos, separados uns dos outros por uma imensidão de quilómetros percorridos e a percorrer. nenhum homem, nenhuma mulher, nenhuma criança. apesar duma ou outra casa, tão minúscula na grandiosa dimensão da paisagem, prestes a ser engolida pela vastidão, como se desabitada, à cautela.
e então pensaste coisas estrambólicas, assim tipo, que as ovelhas talvez tivessem alma, quem diz ovelhas diz vacas e cavalos, e que as almas de todos eles eram mais pacíficas do que as humanas, e que mais valera que deus se tivesse ficado por aí. o deus das ovelhas. um deus sem necessidade de reconhecimento e de adoração, um não-deus, portanto. só que depois deve-se ter cansado daquele pasmo do pasto e daquela simplicidade dos encostos de focinho e daquela paz de corpos refastelados de lado no verde musgo sobre cinza e resolveu inventar. e vai daí, inventou o ser humano e este pôs-se logo a inventar o desassossego. e, para começar, atemorizado por quilómetros e quilómetros de tundra, e outras coisas mais complexas e inexplicadas, inventou deus.
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