a bola incandescente, vinda sabe-se lá de que galáxia, riscou o céu a uma velocidade súbita e enfiou-se-lhe pelas costelas, sem estrondo, a não ser o das próprias costelas, partidas em lascas frias, espetando-se pela macieza dos pulmões adentro. apanhados naquela inesperada e incompreensível malha de garras afiadas, os pulmões chiaram uma aflição, expeliram-se num sopro definitivo, acompanhado de riscas vermelhas, que irradiaram em todas as direcções, qual chuveiro descontrolado. era o sangue, levantado e caído, deixando de cumprir a sua missão de incansável caminhante venoso, abandonando o corpo com o desnorte típico de quem não sabe porquê.
o fumo já ia longe, pelo céu acima, como se, por qualquer ironia do destino, seguisse o caminho inverso ao da bola de fogo. ascendia e ascendia, com a leveza que só o fumo pode conhecer e que ultrapassa largamente a dos corpos transportados em voos oníricos - mesmo adormecidos, os corpos não perdem inteiramente a consciência de si e, como tal, pesa-lhes o conhecimento de, a qualquer momento, poderem cair. furava por entre as nuvens, sem sombra de esforço ou resistência, como se com elas e com o resto do céu, aquela coisa azul, sem outra substância excepto a própria cor, formasse um único elemento, como formava.
numa cambalhota, debruçou-se sobre o infinito abaixo e viu-o, aquele corpo abandonado sobre a toalha de praia, com a cratera acastanhada no meio das costas, lascas de costelas e restos de pulmão à vista, sangue seco cobrindo a areia circundante. outros corpos, vivos, à volta, em grande azáfama, telemóveis alardeando pedidos, mãos afastando crianças, não era espectáculo para crianças, ela que se deixava amparar, ao lado, depois de lhe ter afogado o cabelo nas águas do pranto e do mar, sim, tinha-lhe calhado em sorte vir do banho salgado e apetecido e encontrá-lo assim, quer dizer, o que restava dele. uma mão sensata cobriu-o com uma toalha de praia, dizia coca-cola, era vermelha e branca, e ostentava um saudável e bonito rosto sorridente, preso a um copo borbulhante por uma palhinha.
sentiu um frémito próprio da sua condição anterior, afinal era pouco o tempo passado desde a libertação, achou a visão degradante e miserável, inverteu o sentido e olhou ao alto, esquecendo, de imediato, aquela lamentável cena, em que se tinha reconhecido como o morto do dia e confirmava a sua asserção favorita de quando vivo, como é patética a condição humana!
foi o seu último pensamento crítico, depois a apreciação crítica e, aliás, toda a réstia de pensamento, evolou-se dele como ele se tinha evolado do seu corpo-outrora, a sua cápsula-cela, passou de fumo à verdadeira ausência do azul do céu, mas já não precisou de saber se era azul ou ilusão, porque deixou de ser. já nem fumo, apenas nada.
afinal, não houve luzes brilhantes nem um bondoso ser de barbas nem um rancho de antepassados idos a recebê-lo, também já não era preciso, porque ele já não era. que alívio!
na praia, o circo tinha-se desmantelado, a ambulância acabara de lhe transportar o corpo para o sítio do costume, ela continuava a chorar e os mirones contavam às famílias e amigos aquele triste acontecer, com a excitação proporcionada pelas variações estrambólicas da vida.
estranhamente, ninguém se interrogou sobre as razões da causa, quer dizer, aquela coisa do voo da bola ardente.
bem, ele interrogou-se, mas só quando acordou. nunca mais haveria de se deixar dormir assim, ao sol castigador dum agosto tórrido, nunca mais se permitiria apanhar um tal escaldão, as costas quase em ferida.
ela regressou do seu longo passeio à beira-mar e torceu os cabelos molhados para cima das costas dele, já viste como tens as costas?
ele gostou de a ver. e de a ouvir. afinal era apenas humano. ou voltara a ser...
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