quinta-feira, 6 de agosto de 2020

CAMINHO TORTUOSO DE PEDRAS SOLTAS E ESCORREGADIAS


Estava à conversa com uma amiga, conversa de alma, de dores de alma, puxadas bem lá do fundo, da ferida aberta por acontecimentos funestos e, pior, absurdos. Sim, era mais isso, absurdos!

Naquele dia, pode dizer-se que tomava conta da conversa, impelida por uma necessidade indesejada de desenterrar mortos e vivos, como se o desabafo constituísse a peça indispensável para poder equilibrar-se no tortuoso caminho de pedras soltas e escorregadias que devia pisar se quisesse continuar a atravessar o rio turvo em que se transformara a sua existência. E, nesse momento, havia todas as razões para não prosseguir, mas existia uma – ou disso pretendeu convencer-se! – que ditava em sentido contrário.

A situação era tão mais espantosa quanto o seu hábito consistia em ouvir os outros, não em alardear as dores que lhe consumiam as forças – já não digo o prazer ou o desejo ou o interesse ou a simples procura do sentido – para continuar a travessia ou, no mínimo, aguentar-se em pé.

A amiga, talvez espantada com a magnitude daquele sofrimento e, sobretudo, da sua inédita exposição, assumiu o papel de ouvinte, mais, o de confortadora – para o qual, diga-se de passagem, nem tinha grande jeito, mas que, no caso, desempenhou com empenho e a perfeição possível.

O desabafo prosseguiu com tintas de desespero e desistência, envolto numa pureza visceral, e, de repente, ela interrompeu-se. Acabava de tomar consciência de que o absurdo cercava a sua existência com a naturalidade com que o mar rodeia a ilha, a assertividade com que o populista faz promessas aos eleitores e a maldade com que o predador vigia a presa e, por fim, a consome.

Então, tomada de súbita acalmia, disse: "Sabes, por vezes tenho a sensação de que já morri, ando por cá, mas já morri, algures, num lugar indeterminado, num ponto incerto do tempo!"

A amiga fitou-a, perplexa e sem palavras, apenas porque teve a sensação de que aquilo bem podia ter acontecido, e pensou: que posso eu dizer que seja capaz de trazer à vida uma pessoa que vive com o fardo de se saber morta, mas sem o alívio de o estar?

Acabou por dizer qualquer coisa animadora – tão banal quanto animadora; afinal, naquela circunstância, a sua função era ouvir e mostrar apoio. E isso conseguiu fazer.





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