Algo que li naquele livro conduziu-me à cave, mais concretamente, ao pequeno compartimento disfarçado sob as escadas que a serviam. Não me recordo se tinha porta (esta noite, sonhei que sim), mas isso não passa de mero pormenor irrelevante, porquanto, para mim, sempre se revestiu do mistério dos espaços fechados a sete chaves, destinados a abrigar monstros, fantasmas ou simples objectos que num repente ganham vida, prontos a atacar ao mais pequeno descuido de quem, desprevenido, se atreva a visitá-los ou apenas espreitá-los.
Aliás, a própria cave, vá-se lá saber porquê, também me inspirava certo temor ou, no mínimo, inquietação. Todavia, não passava de uma simples cave, de resto, bastante ampla, do tamanho da própria casa. Desdobrava-se em quatro enormes divisões: uma servia de adega e, como tal, as suas paredes eram forradas de uma estrutura de madeira onde repousava um exército de garrafas; noutra atulhavam-se enormes arcas e um comprido tabuleiro de madeira, destinados a guardar os produtos vindos da terra, desde feijões a fruta; seguia-se aquela onde residiam diversos brinquedos e, mais tarde, caixotes e mais caixotes de livros e cadernos, documentando a nossa passagem – minha e do meu irmão – pela escola, o liceu e a faculdade (do que só vim a aperceber-me demasiado tarde); finalmente, em frente às escadas que vinham do rés-do-chão, encontrava-se a sede da máquina de costura Singer e de uma enorme arca ou malão para onde eram atirados os trapos em desuso, incluído o vestido de noiva de minha Mãe – escusado será dizer que, com muita pena minha, a traça era a verdadeira dona daquele espaço. Comum a todas as divisões eram as teias de aranha pendentes dos altos tectos e as janelas rectangulares, de caixilhos vermelhos, defendidas por gradeamentos decorativos, verdes escuros, que davam para o jardim; também o soalho de madeira e um corredor de cimento que as ligava.
Embora não fosse habitual, cheguei a brincar na cave, na companhia de outros miúdos. Porém, descer à cave desacompanhada representava uma espécie de aventura, se bem que apenas sob o prisma do receio de perigos ignotos e não pelo empolgamento da curiosidade e da recompensa gratificante.
Porém, o que verdadeiramente me causava arrepios era o tal desvão (aquele aproveitamento do parco espaço sob as escadas, aliás, desnecessário, pois, se havia coisa que não faltava, era espaço disponível para arrumações e o mais que fosse, nas quatro referidas divisões).
No fim das escadas, lá estava ele, com a sua escuridão à espreita, pronto a atrair para dentro da sua barriga húmida e sinistra o mais inocente e desprevenido dos mortais. Para cúmulo, embora fosse dotado de uma lâmpada, esta estava sistematicamente avariada, adensando – se possível! – a ameaça do terrível mistério escondido.
E que escondia o interior daquele espaço vivo ou morto-vivo? Pois, nada de especial, apenas mais uma miríade de objectos caídos em desuso, mas que, pelos vistos, não havia vontade (ou coragem) de deitar fora: o triciclo, a bicicleta de pneus furados, montes de pares de sapatos e malas, sobretudo meus, alguns abandonados por mero cansaço e não por excesso de uso, etc. Enfim, como eu bem sabia, nada susceptível de justificar a minha inquietação e temor. Só que, como tantas vezes sucede, o que eu sabia não coincidia com o que sentia.
Após ter deixado de viver naquela casa, sempre que aí regressava experimentava a mesma inquietação com a cave e, em particular, com o seu esconso, ao ponto de andar sempre a fechar a porta que dava acesso às respectivas escadas, como se assim pudesse travar o que quer que de lá pudesse sair (e não estou a pensar em simples correntes de ar, embora também não saiba de que poderia tratar-se). Todavia, meus Pais insistiam em manter a porta aberta, ignoro por que razão.
Certo dia, depois de a casa já ter sido esvaziada, o que lhe conferiu um peso descomunal e insustentável, fui visitá-la uma última vez, na esperança, tornada necessidade, de desvendar o mistério da cave, ou melhor, do sinistro e ameaçador compartimento situado sob as escadas.
Mal abri a porta da rua, o silêncio envolveu-me no seu pesado manto negro, quase me paralisando pernas e braços. Comecei a respirar com dificuldade, à medida que tentava avançar, afastando as franjas que me atavam os membros e enegreciam a alma. Nem sequer podia socorrer-me de um copo de água, pois a água havia sido cortada há muito.
Após um esforço desmedido, lá consegui arrastar-me pelo corredor de mosaico que conduzia à porta da cave. Encontrei-a aberta, como no tempo em que meus Pais insistiam em a manter assim. Então, a opressiva presença da ausência deles pesou-me (ainda) mais do que o espesso manto de silêncio que me aturdira à entrada, ensaiando manietar-me os movimentos e travar-me o avanço.
Segurei corajosamente a lanterna de que me munira – como é natural, à semelhança da água, também a luz havia sido cortada – e ensaiei passos leves nas escadas, cuja madeira, de há muito poupada a outras passadas, se queixou num murmúrio dorido.
Venci o primeiro lanço e atirei-me ao segundo, o que virava para baixo, em direcção ao corredor de cimento. Do lado direito, lá estava aquela boca aberta, expelindo nada mais que um monumental negrume, de cujos insterstícios espreitavam dentes ameaçadores, amarelecidos duma velhice que era mais eternidade.
Controlando a tremura interior, respirei fundo e dei um passo em frente, pronta a mergulhar naquela gruta cominadora e a enfrentar o terror que aí se albergava. À medida que avançava, tive de inclinar o corpo, pois o tecto ia decrescendo, adaptando-se ao declive das escadas sob as quais se situava. Mãos suaves como veludo pousaram no meu rosto e cabelo, provocando-me um arrepio de terror. Não conseguia vê-las, apenas sentir-lhes a textura e aperceber-lhes, ao de leve, a cor, cinzenta escura. Senti-me agoniada, mas prossegui, afastando aquelas mãos com as minhas, que brilhavam, brancas e trémulas, à luz desmaiada da lanterna, ela própria prestes a desmaiar.
Pelo caminho, fui encontrando objectos vários, entregues a um abandono cuja dor só as pessoas abandonadas poderiam entender – foi o que pensei e creio que com razão, até porque, se quem abandona conseguisse entender, talvez se forçasse a rever a sua posição, embora para isso carecesse de empatia, o que, por certo, quem abandona não possui.
Estes pensamentos distraíram-me e com a distracção consegui ver mais claramente: atrás dos objectos, ou melhor, escondidos atrás daquela miríade de objectos (tornados) inúteis, encontravam-se uns olhos amendoados de menina de tranças. Um bibe com coelhinhos bordados em relevo cobria-lhe os joelhos. Sorriu-me timidamente e eu devolvi-lhe o sorriso tímido, como se entre mim e ela apenas residisse um espelho e não a escuridão espessa e o silêncio pesado daquele sinistro lugar. Depois, a menina estendeu-me as mãos e, como se no tal espelho, estendi-lhe as minhas. Os seus olhos de amêndoa sorriram aos meus e vice-versa e ela disse e eu disse, tal qual um eco, "leva-me daqui", "leva-me daqui". E prometemos uma à outra que sim: "Vem, levo-te comigo", "Vem, levo-te comigo".
Subimos a escada juntas, sem perguntas, mas também sem respostas. Se monstro havia naquele compartimento, para lá ficou. Comigo só veio a menina dos olhos de amêndoa.
Desliguei a lanterna, fechei a porta da casa e só me lembro de ter pensado: para sempre! À cautela, guardei a chave, para nunca mais.
Nota: Esta ficção, baseada em aspectos autobiográficos (a cave existiu, com a configuração descrita), foi-me inspirada pelo livro Vem Aí o Senhor, de Gonzalo Torrente Ballester (o primeiro da trilogia Os Prazeres e as Sombras). Concretamente, pela parte em que o protagonista encontra como razão do seu regresso à casa de família (há muito desabitada) a curiosidade por desvendar o que se situa atrás da porta da torre que sua mãe havia mandado fechar para o impedir de aí aceder. É assim a Literatura, um manancial de inspiração e de comunhão de ideias!
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