quinta-feira, 1 de agosto de 2019

CREPÚSCULO


franjas da noite escorregam devagar
anjos doces dão as mãos, esvoaçam para longe
cânticos de pássaros bicam-me o coração

franjas da noite agigantam-se sobre as copas das árvores
sombras desenham-se, escuras
anjos etéreos de mãos dadas perderam-se no longe

espalha-se um sossego milenar

paz tornada possível
como se a guerra não fosse deste mundo
e os homens não padecessem da natureza humana

crianças aquietam-se em seus berços curvos
ondulam em sonhos inéditos
a lua ainda não é plenamente
o sol esvaiu-se

nem uivo de lobos
nem praguejar de sapos

tudo é silêncio
remoto silêncio 

os mortos sossegam seus restos de nada 
e os vivos talvez tenham morrido


essa é a hora









sábado, 20 de julho de 2019

CONTRASTES SILENCIOSOS


no princípio era fim de tarde
devagar fez-se noite
escureceram os brancos
afundaram-se os negros
contrastes silenciosos
barcos adormecidos












terça-feira, 16 de julho de 2019

AO CUIDADO DO DR. CENTENO


Entretanto, numa qualquer Repartição de Finanças, em Lisboa...

Chego às 13,50H, dirijo-me ao distribuidor de senhas. Esgotadas!

Explico a uma funcionária que venho em cumprimento duma notificação motivada por divergências na declaração de IRS e que, não obstante a inexistência de senhas, tenho mesmo de ser atendida, pois estou doente e vim da cama para aqui, de propósito (argumento que se me afigurou mais cauteloso e eficaz do que o verdadeiro, ou seja, que me parece inadmissível o cancelamento de senhas a mais de duas  horas do encerramento dum serviço...)

Indiferente, a funcionária encaminha-me para os colegas do IRS. 

Repito a cena, com o ar mais sofredor de que sou capaz (sempre ajudado pela minha proverbial brancura láctea), na esperança de induzir alguma compaixão — que, em certas circunstâncias, funciona melhor do que o apelo à justiça e aos direitos.

A funcionária, gelada como um bloco de granito e mais mal encarada do que uma bosta de vaca, responde-me que não há senhas e que, se quiser, vá falar com a chefe, que está ali ao lado.

Assim faço, aliás com o ar mais cândido e desamparado que consigo simular!

Visto estar a atender, espero que fique livre. Terminado o atendimento e apesar de bem me ter visto, mergulha as trombas não sei em quê, até que, delicadamente, a interpelo. Dirige-me um olhar que transcende o gelo da colega. Mais parece um cão raivoso, no caso, uma cadela. A surpresa (genuína) transparece no meu olhar: não vislumbro motivo para merecer um tal atendidmento, por parte de uma criatura que está ali para me prestar um serviço, cujo custo, incluído o vencimento dela, é suportado por mim e pelos demais contribuintes — meaning, quando sou simultaneamente sua cliente e patroa.

O meu olhar deve ter sido tão transparente que, mesmo sem dizer nada, entende por bem justificar-se: "É que eu não chamei ninguém”. Pudera, mesmo que tivesse chamado, não seria a mim, que não tenho senha... 

Debito a minha história pela terceira vez.

Retoma o ar agressivo para me dizer que podia ter tratado o caso no portal das finanças e que não posso pretender passar à frente dos outros. Explico-lhe que não quero passar à frente de ninguém, quero apenas ser atendida, manifestando, aliás, estranheza por já não haver senhas. Diz-me, altiva e arrogante, que as senhas já esgotaram há muito tempo!

Embora cheia de vontade de a mandar à merda ou para pior, limito-me a pedir o livro de reclamações. Diz-me, então, que, se quiser, posso esperar para ser atendida no fim de todos... sem senha... se houver tempo! Insisto no pedido do livro de reclamações!

Nesta altura, um homem aproxima-se e disponibiliza-me uma senha. Agradeço. Meio aparvalhada, ainda lhe pergunto se não lhe faz falta (como se este mundo estivesse povoado de bons samaritanos!). Responde-me que não e mostra-me outra senha... para o mesmo serviço. 

Acho estranho, mas não ouso fazer perguntas. Todavia, ocorrem-em: porque haverá uma pessoa de ter mais do que uma senha para o mesmo serviço, quando há pessoas sem senhas? Será que há um serviço de tráfico de senhas?  

A funcionária diz-me que posso usar a senha oferecida pelo homem (pudera não!!!), mas não lhe coloca a questão, óbvia, que me ocorreu.

Ao contrário do que é meu hábito, não insisto no pedido do livro de reclamações. Ponho-me, furiosamente, a escrever estas linhas, no iPhone (o que não dá jeito nenhum, mas serve para desabafar). 

Quando, finalmente, sou atendida, a funcionária demonstra uma santa ignorância, deixando-me plantada por duas vezes, enquanto vai não sei onde tirar dúvidas. Até que chega e me devolve os documentos que levei, com a simples frase, "já não preciso disso", com o que pretendia significar que a questão estava resolvida...

Vim dali a interrogar-me, em modo de lamento: porque será que alguns serviços públicos continuam a funcionar tão mal?!

Apenas um parêntesis para referir, em abono da verdade, que o serviço de apoio telefónico das Finanças (associado ao respectivo Portal) funciona bem melhor, quer em termos de educação quer em termos de competência dos funcionários, pelo menos os que me têm calhado!







sexta-feira, 12 de julho de 2019

ALGUÉM DISSE F***- SE?



Chego quase às 16H. Uma aragem fresca corta agradavelmente a elevada temperatura. Nem parece que acabei de sair de um forno, Lisboa, ontem. Pago a cadeira e o guarda-sol, dispo o vestido, estico a toalha e estico-me sobre ela, disposta a gozar do que resta (e ainda é muito) duma bela tarde de praia. O mar espraia-se lá longe, em cintilações distantes, como quem quer partir. Sei que não é o caso e isso conforta-me. Amo o mar. E o céu azul, lá em cima, onde se espraiam os meus olhos, em cintilações admirativas e gratas. Que boa aragem, diz o meu corpo, a preparar-se para descontrair, entregar-se, dormir. Adoro dormir na praia. Por vezes, acordo com um leve estremeção, olho em redor. Tudo calmo.

Não é o caso, agora. Os meus ouvidos distraem-se do murmúrio longínquo do mar — como é bom o murmúrio do mar e, já agora, o do vento, sobretudo se filtrado pela folhagem das árvores! A realidade exige-me, impõe-se-me. Um pouco a sul, passam as vozes de dois rapazes, a expulsar pela boca c******* e f**** - se. Um pouco mais tarde, sou forçada a reparar que não foram longe. Dirigiam-se ao grupo estacionado ali mesmo adiante, logo a seguir à corda que separa a zona de guarda-sóis da areia restante. São muitos, adolescentes, corpos morenos, já de muita praia, as raparigas de cabelos compridos, eles de calções pelo joelho ou quase. Como é próprio da idade, falam e riem alto, pelo meio cospem palavrões. Bebem cerveja, que tiram de garrafas grandes, da lancheira-frigorífico. Assaltam o homem das bolas-de-berlim. Um deles é o rapaz do dinheiro, não se apercebe que lhe vem daí a popularidade.

F***- se, penso, perante a ameaça de destruição da tarde de descanso. 

Talvez a noroeste — nem me viro para comprovar —, também alto e bom som, uma voz jovem de mulher profere aí uns três palavrões, numa frase de umas cinco palavras: m****, f***- se (sempre o f***- se a marcar presença, como se vivêssemos dentro dum filme americano) e outro qualquer, já nem sei qual e não vale a pena inventar.

Vejo a minha vida, quer dizer, a tarde ou as expectativas criadas a respeito, a andar para trás. Lá se vai o descanso e, sobretudo, o sono. Faço um esforço por abstrair, mas é impossível.

F***- se, F***- se, F***- se, exaspero-me.

Olho para o lado de lá e vislumbro uma cadeira a vagar. Levanto-me, arrasto a tralha — toalha, saco leve e chinelas, não é grande coisa, ando na tentativa de reduzir a vida ao mínimo de tralhas e ao máximo de conforto — e instalo-me longe da multidão. Por assim dizer, que a praia está cheia de gente, mas, aparentemente, aqui não há grupos barulhentos ao alcance das pontas dos dedos dos pés. Bem, uma mãe segura um filho ao colo, o miúdo dá uns guinchos estranhos, começo a sentir-me incomodada. Tudo muda quando solta umas gargalhadas límpidas e coloridas. É tão belo e reconfortante o riso das crianças! Lembro-me do riso da Inês, quando criança. Penso: é o som mais belo que alguma vez ouvi! Agora tem dezasseis anos. Hei-de reparar em como são as suas gargalhadas, agora, embora não sejam iguais às desse tempo!

O sossego (relativo) começa a instalar-se.

Eis que chega a potente voz de uma mulher de meia idade. Dirige-se à amiga, deitada numa cadeira perto da minha, e interjecciona: «Eia, isso é que é descanso, aí a dormir!!!» Se fosse comigo, perdia a amizade nesse momento! Então vê que a amiga está a descansar e acorda-a daquela maneira?! A acordada é de bom feitio e recebe-a bem. Para mal dos meus pecados. Começam a falar alegremente, alto e bom som, a recém chegada. Atenção, só os meus ouvidos deram por tão tristes cenas. Os olhos e o resto procuram abstrair-se.

Descobri esta praia há cerca de dez anos. Era maravilhosamente quase deserta. De há uns anos para cá tem vindo a encher, a encher, e agora é isto. Não que tenha algo contra pessoas (embora, em geral, também não tenha grande coisa a favor). Também nada tenho contra palavrões, eu própria os uso, talvez com frequência superior à devida, mas, dentro do meu universo privado, sobretudo por razões estéticas. Valerá a pena dizer que, a dada altura em que a minha vida andava completamente f*****, não havia plano que se aproveitasse, fosse pessoal, profissional, familiar, social ou outro, ganhei o hábito de desabafar com recurso a palavrões. Uma espécie de rap da desgraça. Era assim: chegada a casa, fechada a porta, a cabeça completamente à mercê dos acontecimentos, expressava as frustrações e desatinos nuns valentes e desatinados, f***- segrandessíssimo f*****- da- p*** e outras pérolas do vernáculo, sobretudo a primeira. A coisa estava a assumir um tal carácter de habituação que resolvi parar, com receio de me deparar com algum f****- da - p*** — e deparei-me com muitos, podem crer —, numa reunião e, por força do hábito, deixar escapar um hipotético, vá à m****, f***- se, vá pró c****** ou vá levar… bem, creio que já deixei o meu ponto de vista bem explicado!

Dito isto, o que me incomoda não são os palavrões, em si, mas levar com eles fora de contexto, sem ter nada a ver com a conversa. E o que me incomoda ainda mais, mesmo, é ter de suportar conversas alheias. Não me interessam e o zum-zum impede-me de descontrair, descansar e dormir. E é (também) para isso que vou à praia e pago para ficar bem instalada!

Só para dizer, às duas amigas barulhentas (afinal, vim a constatar serem três) ainda vieram juntar-se dois maridos e dois filhos, estes, rapazinhos adolescentes bem comportados. Passaram o resto da tarde a contar histórias ou tangas. Já tendo desistido do almejado descanso, dignei-me ouvir esta: dado tipo, obviamente cognominado de palerma ou otário, levou de férias (assumindo a correspondente despesa) a mulher, a ex-mulher, o marido desta e os filhos que teve com ambas. E o amante da mulher. Não, esta última parte inventei.

Compreendem, agora, o meu desejo de vir a possuir uma praia privativa, ou, em alternativa, que os outros (mas todos, por favor!) possuam praias privativas, deixando a pública só para mim?

Isto para concluir que a praia de S. João (Costa da Caparica, Lisboa, Portugal) já não é o que era! 

F***- SE!







sábado, 18 de maio de 2019

SEDUÇÃO


Praia em Maio, calor fora de tempo, a passar dos 30 graus.

Alonga-se sobre o pano largo e fresco, imenso como toalha de mesa de gigantes. Estão na moda, esses panos. A barriga, quase inexistente, afunda-se entre o triângulo formado pelo osso púbico e aqueles dois outros laterais, não me lembro agora como se chamam nem estou para ir googlar sobre o assunto, toda a gente sabe do que falo. As pernas e os braços estendem-se num comprimento e estreiteza de top model. O cabelo, longo e castanho claro, esvoaça ao sabor da brisa breve que atenua os rigores da temperatura. A pele brilha, sedosa, embrulhada em protector solar. O peito sobressai num tamanho superior ao indicado pelas demais medidas, mas é mesmo assim, de natureza, não por efeito de silicone ou outra treta qualquer. Nada que a perturbe ou prejudique, antes pelo contrário. Sente-se confortável nas suas medidas. Por acréscimo, não é a única a gostar.

Espreguiça-se sobre uma clássica toalha de praia azul escura, com um desenho qualquer em cinzento, nada de exuberante. Também ele se prolonga por uma altura para lá da norma. O corpo desenha-se-lhe músculo a músculo, exibindo uns abdominais tipo tablete de chocolate.

Para além do mar, em frente, da areia, por toda a parte, do céu lá em cima e das gaivotas que por lá passeiam, pouco há para ver. A praia está quase vazia, não admira, ainda não chegou o Verão e é dia de semana.

Em mais uma volta na toalha, para distribuir a quentura e a cor do sol, ele vê-a, ali ao lado, nem muito perto nem muito longe. Não consegue desviar os olhos, os mesmos que não deram pela sua chegada, ou porque estavam virados para o outro lado ou porque se tinham deixado adormecer. Ajeita os óculos de sol, de lentes verdes escuras e passa uma mão descontraída pelo cabelo, castanho escuro, enrolado em caracóis ligeiros e descuidados.

Também ela dá uma volta, é lei da praia bem distribuir a quentura e a cor do sol. Parece distraída. Ou faz-se distraída, vai dar ao mesmo. Soergue o corpo longo e esguio e coloca uma mão em pala sobre os olhos, lânguidos, fixados no longe, questão de medir distâncias. Acaba por se levantar. Em movimento lento e elegante, o peito a sobressair, orgulhoso, talvez mesmo atrevido, do fato de banho preto, caminha em direcção ao mar. Experimenta a água com um pé, questão de medir temperaturas.

Também ele se levantou. A uma distância prudente, nem demasiado grande nem demasiado pequena, acompanhou-a. Agora está ali, muito perto, a adentrar-se na água, quase a seu lado. 

Ao contacto da água, ela estremece, dá um pequeno salto para trás, furtivo, quase pirueta de ballet. Ele diz, «Está fria.» e, mal lhe vê o sorriso despontar nos olhos caramelo, acrescenta, um pouco estouvado, «A água, quer dizer, a água está fria, também não admira, ainda só estamos em Maio». Ela continua a sorrir, o que o faz sentir-se feliz e entusiasmado. Agora não tem dúvidas de que, finalmente, ela deu por ele. Nem imagina há quanto tempo isso já sucedera, ela a reparar nele, pelo canto do olho, defendida pela cumplicidade das lentes anti-reflexo.

Acabam por vencer a resistência ao frio - ou talvez se tornem imunes ao frio - e adentram-se no mar. Quando saem, cobertos de sal e sol, vêm a falar, ele mais do que ela, juntando às palavras gestos. Enquanto ela se senta no seu grande pano de praia ou lá como é que aquilo se chama, ele vai buscar a toalha. Ficam a uma proximidade de estender uma mão ou um pé e tocarem-se na pele. Não digo que se toquem na pele. Ao menos nesse dia. Mas que sei eu!

Maio continua com sol aberto e temperaturas elevadas, extemporâneas. A praia não saiu do sítio. A temperatura da água do mar é irrelevante. A toalha dele desapareceu. Usam apenas o grande pano tipo toalha de mesa de gigante. Dá bem para os dois e até sobra. Agora vivem pele com pele. 

Chega Junho e Julho e Agosto e por aí fora até um novo Maio. Regressam sempre em Maio, coisa de quem festeja, de quem gosta de anotar datas e festejar. Ele transporta o saco com o pano grande e os protectores e as demais tralhas. Ainda fica com uma mão livre para lhe passar pelo ombro nú, para lhe acariciar o ombro nú. Ambas as mãos dela ficam livres. Gosta de lhe despentear os caracóis, de lhe passear os dedos pelos lábios carnudos. E sorriem, sorriem sempre, como naquele primeiro Maio de mais de 30 graus e brisa fresca de despentear cabelos.

Não partilham apenas o pano de praia. Também a casa e, sobretudo, partilham-se. Estão felizes. É claro que falo em geral, dos pormenores do dia-a-dia sabem eles.

De repente, um dia, uma dor ou outro sintoma qualquer. Médicos chamados a pronunciar-se. Mau prognóstico, cumprido em menos de seis meses. Ela.

Agora posso dizer que ele está infeliz, muito infeliz mesmo, inclusive nos pormenores do dia-a-dia. Tudo lhe parece ter perdido o sentido. Abre o armário da roupa e fica especado a olhar, fixamente, como se ela pudesse saltar de dentro dum vestido um dum par de jeans. Encontra o pano de praia grande numa gaveta. Segura-o com força, quase o rasgando de dor e desespero. Leva-o para a cama, cheira-o e cobre-se com ele.

Chega um novo Maio. Vai à praia, aquela praia. Estende o pano grande na areia, mas não se deita nele. Dirige-se decididamente para o mar. Já com a água gelada pela cintura, olha para trás, para o pano, talvez com a esperança de a ver a acenar-lhe um adeus ou, quiçá, a levantar-se e vir ter com ele. O pano desapareceu, talvez levado pelo vento agreste, que este Maio não está como os outros. Prossegue. 

Não há vivalma na praia, excepto um passeante solitário. Observa. Aflige-se. Acena. Chama. Não se atira ao mar, que o mar está bravo e, além disso, não sabe nadar. Liga para o 112. Passada meia hora ouve-se uma sirene. O som aproxima-se. Extingue-se.

O corpo deu à costa dois dias depois.

Deixo passar um tempo, para aqui às voltas, e digo para comigo, irritada, «Agora é que a arranjaste bonita! Mataste as personagens, primeiro ela, depois ele! E agora, como vais fazer para prosseguir? Sem personagens não há história, segreda-te a voz da razão. Querias continuar, não os tivesses matado! É no que dá armares-te em deusa, criar e matar gente. Ainda por cima, cedeste a uma love story, para acabares mais depressa. Nesta escolha estiveste bem, toda a gente sabe que, a existirem, as love stories nunca duram muito.»

É Maio, meio de Maio, calor excessivo, extemporâneo, aí uns trinta graus, mais coisa menos coisa. Praia, estou na praia. Estico-me sobre a toalha. Acabei de passar protector solar pelo corpo. A preguiça inunda-me. Viro-me dum lado para o outro, a espaços, para repartir o calor e a cor do sol por cada centímetro de pele. Numa das voltas olho para o lado. Depois, levanto-me devagar e encaminho-me para a água, questão de medir temperaturas... 





terça-feira, 14 de maio de 2019

FORMIGAS DE VERNIZ ALADAS


seguro um pedaço de tempo
escorrega-me das mãos
cai
chão
espatifa-se em mil fragmentos
grito
não eu
ouve-se um grito
soltam-se estranhas criaturas


formigas de verniz aladas

sapos atravessados por setas de cupido
nunca viraram príncipes
talvez medo
ou outra poderosa razão
pobres delas
meninas de conto de fadas
na esperança de milagres

donzelas de alvos mantos gotejados de carmim
ai como é bom ousar, diz uma
para dentro de si
ainda ignorante de arrependimentos

sóis de queimar peles desprevenidas
todavia felizes
por isso felizes

pássaros a cantar em brados e em bandos
é o tempo do gozo colectivo

fixo os olhos no chão
que espanto!
fragmentos reunidos
aquele pedaço de tempo em minhas mãos 
recolheu-se e partiu
não voltará
aquele pedaço de tempo
aquele exacto pedaço de tempo
voou com as formigas
e os sapos
e as donzelas 
e os sóis
e os pássaros
e o que mais

eu fico
ainda







quarta-feira, 8 de maio de 2019

COM O NOME GRAVADO A X-ATO


Nem todos os livros são dedicados. Este, sim: Para a Margarida, minha flor, amor da minha vida. Dedicatória pirosa, pode dizer-se, mas era assim. Aliás, é assim, pois o livro continua a luzir em tudo quanto é estante de livraria e plataforma virtual, para quem o quiser ler. E são muitos, desde o início, mas especialmente a partir do momento em que um leitor atento, por acaso (ou talvez não) jornalista, pousou olhos perspicazes e inquisitivos na dedicatória e reparou em certa coincidência, aliás bem gritante. Daí a questionar-se foi um pulo, por alguma razão era jornalista.

Dois anos antes, Afonso Coutinho escreveu um romance. Não um romance qualquer, um thriller poderoso, daqueles que deixam os leitores de língua de fora, ofegantes e salivantes na expectativa do próximo parágrafo, da próxima frase, da próxima palavra, numa ânsia de descoberta, que não passa de necessidade visceral (e inconfessada) de sangue e mistério, de pavor e violência, vontade de atulhar aquele buraco sem fundo à vista que a natureza original, a criação ou seja lá o que for cavou e deixou exposto, mas a moral insiste em não permitir encher ou sequer explorar. 

Escreveu-o com a adrenalina ao rés da boca e da ponta dos dedos, quase a babar-se de prazer, como que espicaçado pela ideia de martírio e vingança e excitado com a concretização dum inimaginável martírio e duma vingança quente, embora executada a frio. E era tamanha a violência envolvida na ideia e no acto que só a realidade poderia superá-la. Quer dizer, o livro impunha-se, convencia, conquistava. Mais, era de molde a provocar retracção das entranhas - ou aquilo a que Vladimir Nabokov aludia como arrepio na coluna - e, no limite, a criar dependência. Em suma, atrairia leitores como mel a moscas.

A primeira Editora que abocanhou o manuscrito já não o largou. Aquilo prometia tornar-se numa mina de ouro. E assim sucedeu. O livro vendeu-se que nem pipocas - e não, descansem que não iria dizer como pãezinhos frescos, expressão tão déja vue (ou déja entendu) ou, para usar um cliché, tão clichê/lugar comum - num qualquer cinema UCI ou Lusomundo. 

O livro, de estilo cuidado e linear e ritmo trepidante, contava uma história de amor e morte. Não existem temas mais banais, poderá dizer-se, e é verdade. Mas não o é menos que todos os grandes temas são banais. Na melhor das hipóteses, tornaram-se banais. Acontece que Afonso Coutinho os abordou com enorme mestria, extrema originalidade e particular violência. E, como convém, o horror marcava logo a abertura, o incipitRezava assim:

O vídeo explodiu no YouTube com estrondo e tingido de vermelho, um vermelho sanguíneo a desdobrar-se como fitas de néon alumiando a mais escura das noites. O corpo deixara de o ser, membros seccionados à altura das axilas e das virilhas, dispostos em forma de cruz, perna seguida de braço, braço seguido de perna. Sobre as mãos, abertas, repousavam os globos oculares, muito escancarados. Pareciam de vidro, mas não eram. Ali ao lado, ele, corpo vivo, agitado num espasmo orgástico, segurava o restante, o tronco, encaixado nas suas pernas nuas, abertas e cobertas de sangue. Não se ouvia outro som, excepto o do seu brado animalesco. O corpo desmembrado tinha sido dela, Margarida, sua flor, amor da sua vida. O outro, corpo vivo, de face tapada, ignorava-se a quem pertencia. Só mais isto, os lábios dela, da que tinha sido Margarida, repousavam ao lado, exibindo um esgar que tanto podia indiciar pavor como gozo, talvez ambos… em momentos diferentes.

O jornalista leu-o sob uma náusea permanente, mas não foi imune à curiosidade, um crescendo de curiosidade. Em sua opinião, o livro estava muito bem escrito, a história era viciante, mas havia mais qualquer coisa, uma inquietação despertada pela suspeita de que por trás da ficção se escondia a realidade. Afinal, não estava tão na moda a mania das autobiografias ficcionadas ou das pseudoficções encapotando autobiografias? E havia ali uma paixão tal que se afigurava impossível tamanho grau de violência emanar apenas da imaginação.

Pôs-se a espiolhar todos os bocadinhos do livro à procura de mais, mais informação: quem era aquele autor, de onde surgira, que história carregava? Bem vistas as coisas, nunca antes se tinha ouvido falar dele. A digressão pela capa, contra-capa, badanas e páginas inicias do livro conduziu-o a uma descoberta inusual: inexistia nota biográfica relativa ao autor. Todavia, mal reparou na dedicatória, precipitou-se para o incipit. Lá estava, em ambos os lados: Margarida, minha flor, amor da minha vida; Margarida, sua flor, amor da sua vida. Um baque espantou-lhe o coração, uma nuvem negra atravessou-lhe a mente, Será que ninguém reparou nisto!, interrogou-se, perplexo e inquieto.

Contactou a Editora, pesquisou na Internet, indagou aqui e ali, por tudo quanto era susceptível de facultar respostas. Em vão: Afonso Coutinho não passava de pseudónimo, inexistindo a mais mínima pista sobre a identidade real do escritor.

A inquietação do jornalista aumentou. A curiosidade tornou-se-lhe indomável, não parava de se repetir: Ignoro como, mas hei de descobri-lo, nem que faça disso a missão da minha vida.

Passados uns dias de agitação, descortinou uma maneira: pôs-se a pesquisar os registos policiais e jornalísticos, à cata de mulheres assassinadas com um modus operandi idêntico ao descrito no livro. 

Ao fim de aturado trabalho e muita frustração, descobriu que havia um considerável número de mulheres de nome Margarida desaparecidas ou encontradas mortas, vítimas de homicídio, mas só lá para o décimo quinto ano anterior ao da publicação do livro deparou com o caso de certa mulher cujo corpo havia sido encontrado em circunstâncias coreográficas idênticas às descritas naquele macabro incipit. As únicas diferenças consistiam na ausência do assassino - ainda por identificar, como, aliás, já calculava - e no facto de ela ter o nome, Margarida, gravado a x-ato sobre o peito. De resto, permanecia por descobrir a sua identidade, tarefa dificultada por apresentar as pontas dos dedos queimadas e os dentes arrancados, horrores a acrescer aos descritos no livro.
O jornalista suspirou de alívio. E de inquietação…

Daí para a frente, dedicou a vida, exclusivamente, à tarefa de descobrir aquele autor fantasma.
Começou por lançar um desafio, amplamente divulgado em tudo quanto eram redes sociais. Rezava, apenas, isto: 

Afonso Coutinho, não te escondas mais, conta-nos tudo: onde jaz Margarida, tua flor, amor da tua vida?

Não tardou a ser contactado.

Entusiasmava-o a ideia de que o seu livro haveria de causar um estrondo maior do que aquele Com os Olhos nas Mãos, o thriller de Afonso Coutinho. O seu iria chamar-se, Nunca Escrevas uma Dedicatória.

Caso viesse a ver a luz do dia…



Notas: A ideia para este conto surgiu-me de um thriller fantástico, que li há pouco tempo. Trata-se de «O DIA EM QUE PERDEMOS A CABEÇA», romance de lançamento de Javier Castillo. Concretamente, reparei que o livro é dedicado «À minha tudo, pela qual daria a minha vida inteira, pela qual faria qualquer coisa» e que, logo no início, ao referir-se àquela que, por essa altura, se julga ser sua vítima, o protagonista usa uma expressão semelhante, minha mais que tudo, in pp. 12.

A citação de Vladimir Nabokov foi retirada do seu livro «OPINIÕES FORTES».