O projecto Vladimir Blue - se assim se pode
dizer, o que não é o caso, visto não ter sido programado - apertava os joelhos
moles contra a transparência macia daquela aparência de peito, numa inquietação
precoce, quando a ferida rebentou, súbita, no seu minúsculo cérebro (apenas
meia dúzia de neurónios, por essa altura), acendendo-o, não pela primeira vez,
para a estridência do lado de lá, que, mais do que o aguardar, já lhe residia
por dentro, firmemente instalado. Ela desviara a cara, num reflexo não
suficientemente sincronizado com a habituação, e apanhara, em cheio, na face
esquerda, a brutalidade do punho cerrado, sem outra justificação que não fosse
um longo historial de álcool, misturado com frustração, raiva e possível
confusão da sua pessoa com um saco de box, só podia. Devagarinho, baixou a
cabeça e deixou escorregar uma lágrima surda, que, em breve, se misturou com o
fio vermelho que lhe escorria pelo lábio rasgado. Acima de tudo, não queria que
o seu choro fizesse barulho, não fosse a criança inquietar-se e nascer
sobressaltada. Sim, ela, Natasha sem apelido, queria aquele nascimento e
garantir que o seu produto surgisse, se não envolvido em paz, está bom de ver
que isso seria impossível e ela não era propriamente irrealista, pelo menos,
não afectado pelas marcas da porrada física e psicológica infligida por aquele
homem, em cujas malhas estupidamente se deixara prender. Ele, pelo contrário,
não estava sequer interessado na criança, quase impusera o aborto, não por
palavras mas com uma sova monumental, quando a notícia da gravidez lhe fora
comunicada.
Vladimir
Blue agitou-se no banco, os seus olhos brilharam de fúria e levou as mãos aos
ouvidos, com o desespero dum grito engolido. Foi a primeira vez que a Sombra
lhe viu as mãos. Eram, de facto, rígidas e nodosas, mas o que mais
impressionava eram os cortes em ziguezague que grossas cicatrizes lhe
desenhavam na palidez, quase translúcida, da pele, coexistindo com uma rede
ostensiva de veias salientes. Aquilo mais parecia uma fotografia por satélite
dum campo de guerra inacabada. A Sombra encolheu-se imperceptivelmente, não
fosse a agitação de Vladimir Blue piorar.
O projecto Vladimir Blue amarfanhou-se mais,
naquele saco de águas cansadas, e aguardou que a estridência fosse desaparecendo,
qual eco perdendo-se em círculos concêntricos na lonjura do esquecimento.
Aquilo não prometia nada de bom, a qualquer momento podia voltar a estoirar, e
era sabido que a surdez do choro se lhe seguiria, porque, mau grado ser surdo
ou talvez por isso mesmo, fazia-se ouvir mais alto e feria mais do que se fosse
declarado, expansivo, revestido dum qualquer significado perceptível, por
exemplo, uma revolta ou uma tentativa de retaliação, para não dizer, de
libertação.
As vozes soaram, a dela, tímida e cautelosa,
a dele, bruta e potente
- Ao menos poupa a criança, já não falo por
mim.
- Se é só por isso toma lá outra, com os meus
cumprimentos para a maldita criança – e Piotr voou, novamente, a mão fechada,
na direcção do rosto dela.
E foi assim que Vladimir Blue ficou a saber
que era uma criança ou melhor, a criança, uma criança talvez nunca pudesse vir
a ser, concluiu a Sombra,
enquanto ele se levantava num repente de aceleração, seguindo o caminho da
saída sul do parque, no seu habitual passo apressado, como quem foge duma
qualquer ameaça de perseguição.
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