terça-feira, 9 de novembro de 2021
A PROIBIÇÃO DO OUTONO
segunda-feira, 16 de agosto de 2021
ATÉ AS MOSCAS SUMIRAM!

(imagem obtida em pesquisa google) |
terça-feira, 10 de agosto de 2021
O ÚLTIMO VOO DA MACACA
no último ano da faculdade, vivi numa residência universitária, gerida por freiras à paisana, ou seja, que não usavam hábito. não frequentava a capela e decorava o meu quarto (privativo) com cartazes de minha autoria, habitados por figuras de amantes enlaçados em beijos e de frases do tipo, vale mais acreditar no diabo do que em deus, pois do diabo nada há a esperar e de deus nada há a receber, no que era, sem dúvida, uma manifestação tardia de provocação adolescente, apenas compreensível pela razão de ter desperdiçado a adolescência ensimesmada em tão profundas quanto deprimentes querelas existenciais, que apenas me levaram a conclusões do tipo da condensada naquela asserção, enquanto deixava passar a florescência própria dessa fase da vida, tão irrepetível quanto qualquer outra, mas com uma perda talvez superior ao desperdício de qualquer outra.
nada disto interessa àquilo de que me proponho falar, excepto pelo facto de ter sido nesse contexto que conheci a macaca, outra das residentes no citado local. curiosamente, não me recordo do nome dela, soa-me vagamente helena, mas sem certeza. macaca era a alcunha atribuída por outra nossa companheira de habitação, a j., de que me tornei grande amiga (anos mais tarde vim a ser madrinha de um dos seus filhos). a j. era muito viva, simpática e engraçada; atribuía estas alcunhas por brincadeira e sem intuitos ofensivos. a mim, chamava-me buda, talvez devido aos meus olhos achinesados e lábios carnudos, bem como ao meu forte interesse pelo oriente longínquo.
a macaca era madeirense e frequentava um curso de letras; aspecto frágil, magra e não muito alta, de proporções harmoniosas, do seu sorriso irradiava um brilho dourado, talvez porque o dourado predominava no seu rosto de feições perfeitas, um pouco asiáticas por virtude dos olhos rasgados e dos pómulos salientes: dourado era o cabelo, o tom da pele e os olhos, estes cor de mel. era discreta e simpática.
mesmo sem sermos especialmente próximas, a dada altura, a macaca contou-me do seu mundo interior, um mundo de negrume, tanto mais negro quanto o flagrante contraste com a irradiação luminosa da sua miúda pessoa. em aparente serenidade e sempre sem perder o sorriso, disse-me da sua família, pai, mãe e irmãos (não recordo quantos, mais do que um) e da doença de que, à excepção da mãe e justamente por herança paterna, todos sofriam, doença mental incapacitante e incurável (cujo nome não me lembro se referiu). ouvi-a atentamente, como sempre gostei de ouvir as pessoas, devo ter-lhe endereçado algumas perguntas e frases animadoras, como sempre tive por hábito fazer, mas nada em pormenor me restou na memória, excepto a percepção nítida (e compadecida) de que a vida da macaca estava marcada por um feroz receio, sem dúvida com a marca das maldições: (vir a) sofrer da doença paterna, que já pendia sobre os inocentes irmãos.
aquilo inquietou-me, mexeu-me por dentro ao ponto de permanecer como uma das inúmeras memórias empáticas que acumulo.
o tempo decorreu, acabámos os cursos, deixámos a residência universitária, cada qual seguiu o seu caminho e nunca mais soube notícias dela.
não muitos anos mais tarde, em conversa com a j., talvez rememorando aqueles tempos, perguntei-lhe se sabia alguma coisa da macaca. respondeu-me: "suicidou-se, atirou-se dum quinto andar da avenida cinco de outubro". gelei de desgosto, talvez não tanto por aquela morte, mas pelo profundo sofrimento que à mesma tinha conduzido como único caminho de libertação.
ao longo da vida, este caso, como tantos outros, veio-me ocasionalmente à memória, nos últimos tempos com uma insistência maior, que me reclamou a necessidade de o relatar. talvez uma homenagem à gentil macaca, cujo sofrimento e, sobretudo, a elegância com que dele me fez testemunha, nunca consegui esquecer. e, sem dúvida, uma homenagem à coragem do seu acto final, o último voo.
sábado, 12 de junho de 2021
E SE FOSSE ASSIM?
não se tratou de um pesadelo, os pesadelos vinham embrulhados em cor diferente, que não refiro para não me repetir. desta vez, foi apenas um sonho, não um sonho acordado, do jeito dos que, no dizer do poeta, "comandam a vida", mas um sonho-sonho, daqueles a dormir, que talvez sejam comandados (ou encomendados) pela vida – embora, no caso, falar em vida seja, no mínimo, cínico...
acabara de se deitar, ainda nem apagara a luz. tudo parecia sereno, quando um peso bruto se lhe abateu sobre o lado esquerdo do peito, albergue do coração e de outras vísceras. os olhos fixaram-se no tecto, reluzente de branco e, como se por efeito ricochete – causador de estranheza, mas aceite com assinalável naturalidade –, viu a boca, a sua própria boca, lábios entreabertos, talvez demasiado pálidos, deixando sair uma onda de corpo ascendente, que lhe lembrou a sombra de um mergulhador a evoluir para a superfície da água. só que, em vez de água havia ar, e em vez de superfície aberta erguia-se a barreira do tecto, onde os seus olhos de brilho perdido se estampavam. nada disso se lhe afigurou estranho ou ameaçador, nem para tal teria tido tempo, pois tudo se desenrolava com a naturalidade da abelha rainha a ser obedecida e com a rapidez do tempo que passa, quando, decorridos dez anos, ou menos, dependendo da idade do observador, se olha para trás.
aquela sombra de corpo movia-se com elegância e graciosidade, por força do simples movimento dos braços que, alinhados na perpendicular, se afastavam e juntavam ao de leve e sem amplitude de maior. com a mesma leveza, o corpo-sombra ultrapassou o tecto tal qual se ele ali não estivesse plantado, nem fosse barreira pouca, de betão, já agora.
as suas pálpebras descaíram, aliviadas do peso que, pouco antes, se lhe abatera sobre o lado esquerdo do peito e, mesmo com elas descaídas, conseguiu divisar o que se passava do lado de lá, para além do tecto, o tecto que funcionou como se não existisse.
era lindo de ver: o corpo-sombra subia e subia, por força do movimento dos braços, envolto numa neblina que rapidamente passou do cinzento ao azul claro e, depois, à ausência de cor, a menos que a luminosidade possuísse cor. atingida a luminosidade o corpo-sombra fundiu-se com ela, tornando-se invisível enquanto objecto autónomo, apenas vulto difuso de uma calma ascensão sem pressa nem objectivo: paz, nem que apenas um vestígio inquantificável de paz, perdido na imensidão da eternidade ou talvez a própria eternidade. este pensamento deixou-o plenamente feliz. continuou estendido na cama, mesmo sem dar por isso.
na manhã seguinte, não se apercebeu de quando a empregada, pensando-o já fora de casa, no trabalho, irrompeu no seu quarto, de aspirador em riste, do estardalhaço que fez e de tudo o que se seguiu.
verdadeiramente, ele já tinha saído. deu consigo a atravessar a porta de casa, a rua e depois a porta do escritório e a do seu gabinete. pelo caminho foi distribuindo cumprimentos, mas ninguém lhe respondeu, mesmo os que se amontoavam, cochichando o incompreensível atraso, "logo o Marques, tão pontual", "que terá acontecido", "se calhar é melhor ligar-lhe" e um etc. de frases sem sentido.
acabado de se instalar, e como ninguém desse mostras de lhe notar a presença, apesar da atenção que todos concentravam nele, ou melhor, na sua (alegada) ausência, espantou os olhos para o tecto, num desabafo, "mas que raio se passa aqui". só então se lembrou do sonho de libertação da noite anterior e do fascínio invejoso que o mesmo lhe causara. calmamente, levantou-se, descontraiu os braços ao longo do corpo e começou a movimentá-los – afastar, encostar –, como os do corpo-sombra do sonho e, para seu espanto e felicidade, com idêntico resultado: uma leveza jamais experimentada, conduziu-o por ali acima, através do tecto do gabinete e de todos os tectos dos vinte andares acima do mesmo e, depois, do telhado do edifício; sem hiato, misturou-se na neblina cinzenta, depois azul e depois luz. e, envolto numa onda de paz, deixou de sentir e de pensar. mergulhou, apenas, no universo.
quinta-feira, 10 de junho de 2021
TENDERNESS
perco-me nos teus braços
a tua pele é a minha pele
o sol extinguiu-se há muito
a lua em seu lugar
chuva mansa afaga os vidros da janela
teus dedos o meu corpo
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aconteceu na madrugada de vinte e seis de Agosto de 2020, não interessa se ao vivo ou em mero sonho, por vezes nem se conhece a diferença. guardei (em folha de papel) como guardo tantas palavras – coisas, já não. para criar registo? para mais tarde usar? sei lá!
hoje, dez de Junho de 2021, eram duas horas e quarenta e um minutos da madrugada, dei comigo a pensar: guardar "coisas" com a expectativa de as vir a usar não é criar bolsas de futuro, mas enfardar sacos de passado.
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acabo de juntar aquelas e estas palavras, ou seja, usei dois pequenos sacos de passado. talvez tenha criado um pouco de futuro, pelo menos enquanto houver um leitor para isto.
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perco-me nos teus braços
a tua pele é a minha pele
o sol extinguiu-se há muito
a lua em seu lugar
chuva mansa afaga os vidros da janela
teus dedos o meu corpo
quarta-feira, 12 de maio de 2021
CHAMAVA-SE JOAQUIM
domingo, 28 de março de 2021
CÂNTICO DO POSTIGO
abram-se os postigos
deixem sair cafés fumegantes
empadas de galinha e pastéis de nata
dêem-se às máscaras as cores das amêndoas pascais
repliquem-se miríades de flores
essas que explodem pelas bermas do asfalto
inundando a cidade de amarelos, rosas vários, lilás
e o que mais
refresquem-se as almas até ao arrepio
confine-se o álcool-gel às saturadas mãos
aspirem-se os perfumes inebriantes dos jardins
mergulhe-se no verde que reinventa as árvores
sinta-se a areia até receber a abençoada onda na ponta dos pés
desejosos de longe
que, tantas vezes, o longe espreita aqui bem perto
cavalguem-se as asas dos pássaros urbanos
e das gaivotas suspensas sobre o mar
Encurtem-se distanciamentos com zooms e sorrisos
e palavras trocadas em ondas virtuais
que virtual é a vida mesma
afugente-se o papão com risos
afinal, não resistimos nós ao homem do saco, ao patrão soberbo
à infidelidade de certo amigo do peito ou companheiro
à doença que um dia chegou, matreira
à morte de entes queridos?
faça-se tudo isso
não porque ele não exista, esse papão nefasto
mas, justamente, porque existe
e é mais fácil combater o que se sabe estar ali
um dia nos riremos dele
não sucedeu assim com o homem do saco ou o lobo mau?
então, porque não rir agora?
afugentá-lo com o riso, fazer-lhe caretas com as máscaras pintadas,
inundá-lo de álcool-gel até ao afogamento
mantermo-nos unidos na distância
e por isso e com isso
escancarem-se os postigos
devorem-se cafés do lado de fora
troquem-se sorrisos acima do limiar das máscaras
postigue-se, postigue-se, postigue-se
até ser possível abrir de par em par portas e janelas
abraços e beijos
caminhe-se sobre as ondas e as asas dos pássaros
até ao dia em que, gloriosamente, possamos enterrá-lo
afogado em álcool-gel
fugido às arrecuas de caretas mascaradas
faça-se do postigo estrada aberta
espécie de route sixty-six
em vez de beco sem saída
escancarem-se os postigos, escancarem-se os postigos, escancarem-se os postigos!
domingo, 14 de março de 2021
CÂNTICO DO ENTARDECER
quarta-feira, 3 de março de 2021
POR AÍ...
(o meu caderno novo) |