Tudo começa com o gesto
duma idosa (A senhora teria talvez sessenta, sessenta e cinco anos), sozinha
numa piscina, seguindo as aulas do jovem professor de natação. A pungente comicidade dela cativou-o e essa comicidade era notada também pelo
professor, como deixou transparecer na sua máscara de contenção do riso (in p. 11).
A aula terminou, a senhora
saiu da piscina, afastou-se e quando se
encontrava a quatro ou cinco metros do professor de natação, virou a cabeça na
direcção dele, sorriu-lhe, e fez-lhe um sinal com a mão… Aquele sorriso, aquele
gesto eram de uma mulher de vinte anos! A mão como que voara com uma ligeireza
encantadora. Como se, por brincadeira, ela atirasse ao amante um balão de
muitas cores. O sorriso e o gesto eram cheios de sedução, ao passo que o rosto
e o corpo já nada de sedutor tinham. Era a sedução de um gesto afogado na não-sedução do corpo (in pp. 11 e 12).
Esse foi o gesto! O jovem
professor de natação, incapaz de se
conter por mais tempo, rebentou a rir (in p. 12). Ele, o escritor dentro da escrita,
inspirou-se para dar vida à personagem dum romance, talvez na esperança de
ganhar a sua quota de imortalidade - digo eu.
Ele, Milan Kundera, o romance, A
IMORTALIDADE.
O gesto, transplantado
para a personagem Agnès e usurpado,
na típica mímica de imitação de irmã mais nova, mas não só, pela personagem Laura – agora ajustado a adequados
rostos e corpos – vai acompanhando o desenrolar da narrativa, marcando a ideia de
sedução como quem sublinha o tema do amor – tão grato a Kundera, tão grato a tantos de nós! - ou dos
amores, que são vários nas suas manifestações: o amor de Agnès ao seu mundo interior (que prevalece sobre o amor a Paul, o marido, a Brigitte, a filha e, até, o amor à evasão dos esporádicos encontros
com o seu amante ocasional, levando-a a erigir em prioridade o afastamento de
todos eles); os vários e combativos amores de Laura (a coleccionadora de amores, a mulher mais velha do que o homem - in p. 106 -, relação condenada ao anonimato imposto pela normatividade vigente, a eterna apaixonada pelo cunhado, Paul, que vai seduzindo através da exibição duma pretensa
fragilidade, até que…); o amor das filhas pelos pais (de Agnés e de Brigitte, com
nuances de expressão dúbia, no caso desta última); os diversos amores de Paul (dos tranquilos e convencionais, à mulher, à filha, à nova mulher, ao menos convencional e tão recordado, à sua ametista - in p. 108 - mulher mais velha, permissiva mecenas); o amor de Bernard por Laura , mulher mais velha (tão excitante quanto protegido, na negação da sua assunção social); os diversos amores dos diversos amantes, etc..
Sem esquecer o amor de
Bettina a Goethe (acima de todos os seus outros amores), qual pano de fundo
ensaístico para este inesgotável tema, mas também, para o tema que dá título ao
livro, a imortalidade, pois não pode ignorar-se a sugestão de que Bettina não
procura (apenas?) o amor, mas (sobretudo?) a colagem à imortalidade.
E aqui reside a ponte – aliás, não (necessariamente)
estabelecida – entre o amor e a imortalidade (se é que o Autor pensou sequer em sugerir tal ponte).
A ideia da imortalidade
é-nos apresentada – e não vejo que pudesse ser doutra maneira -, como o que
fica de quem passa, ou seja, aquilo que, após a morte - embora se conquiste em vida - permanece numa qualquer memória colectiva, aquilo
que fomos capazes de deixar; com uma particularidade, aquilo que fomos capazes
de deixar não somos nós, mas tão só a imagem que de nós foi apercebida.
Sublinhem-se, a este propósito, os curiosos diálogos post mortem – só podiam!
– entre Goethe e Hemingway (que bem escolhido, este!).
Ainda a propósito, é
introduzida a problemática da supremacia (ou soberania absoluta?) da imagem – outra
ponte para a senhora idosa? Não creio, mas podia explorar-se esta hipótese –, do que
parece sobre o que é (o eu) ou, em termos mais sociológicos (do que
psicológicos), da imagologia sobre a ideologia. Aqui, novamente, em jeito
ensaístico, longe do estilo romanceado da catalogação
do livro.
Em resumo, um livro em que
os estilos (ensaio, romance) e os temas (imortalidade, imagem, fim das ideologias,
amor, sobretudo este) se somam (não necessariamente articulados, parece-me, mas
abrindo espaço à descoberta ou invenção de inúmeras conexões escondidas).
Enfim, um livro com pensamento e um livro para
pensar, portanto, um bom livro.
Mas eu talvez lhe tivesse chamado, O AMOR, ESSE IMORTAL. Não é este o seu leitmotiv?
Nota: transcrições/citações, a partir da edição de Publicações Dom Quixote, Lda., 1ª edição, Junho de 1990.
Sem comentários:
Enviar um comentário