(Continuação)
Encontravam-se,
agora, num comboio vazio doutros passageiros, conduzido sabe-se lá por quem ou
por ninguém, rompendo a alta velocidade uma fascinante parede de espessa neve,
talvez gelo, até mesmo, um glaciar, iluminado por intensos reflexos azuis.
Os assentos eram confortáveis e, através das
largas janelas, vislumbravam, para além da parede de neve ou do que calhasse
ser, uma floresta de abetos, cujo verde se deixava subjugar por alvos mantos
deslizantes, pendentes em direcção ao solo, por entre os quais, de quando em
vez, conseguia divisar-se o movimento furtivo dum qualquer animal, agasalhado
em dourada manta de pelúcia.
- Achas que
são raposas, Miguel? – Perguntou Janete, no seu tom ingénuo.
- O importante
não me parece ser a espécie dos bichos – interceptou Rita, com agastada
impaciência, prosseguindo - o importante é que, pela primeira vez desde que estamos
aqui, nos é dado contemplar uma forma de vida animal. Poderá ser indício de
que, mais cedo ou mais tarde, nos iremos deparar com humanos, não acham?
- Pareces ter
razão, o que só confirma a minha ideia de que havemos de
encontrar o que procuramos – disse Miguel, sorrindo, não resistindo a
reivindicar a autoria daquele bónus prometido.
Janete olhou-o
com censório ar de amuo, pois começava a não gostar daquela cumplicidade
concordante, que se vinha gerando entre Miguel e Rita.
Distanciando-se
dos dois, Rita levantou-se e abriu a porta do compartimento onde se
encontravam, no que foi o início duma demanda inquisitorial sobre as revelações
que o veículo poderia vir a proporcionar-lhes. Depois do que tinha vindo a
acontecer-lhes, surpresa sobre surpresa, susto sobre susto, mais valia fazer
uma jogada de antecipação do que ficar à espera da surpreendente realidade
subsequente.
Miguel, percebendo
a sua intenção e irmanado no seu objectivo, seguiu Rita, dando a mão a Janete,
num convite mudo a que o acompanhasse, o que ela fez, rendida à evidência da
mais elementar lógica de sobrevivência em meio hostil.
Como se
comprometidos num acordo tácito, avançaram em sentidos opostos, ao longo do
comprido corredor, abrindo, sucessiva e escrupulosamente a porta de cada um dos
compartimentos, assim testemunhando o vazio silencioso que todos tinham para
oferecer.
Miguel e Janete
já voltavam para trás, quando Rita atingiu a dianteira do comboio, constituída
por uma cabine, separada do exterior por placas de vidro transparente e
equipada com o que parecia ser moderna tecnologia, cujas funcionalidades,
todavia, não eram apreensíveis por leigos, como era o seu caso e, também,
o de Miguel e Janete, que ela convocou, largando o eco da sua voz pelo corredor.
Permaneciam os
enigmas: por força de que energia e comando se movimentava o comboio, que
trilhos eram aqueles que percorria, para onde os levaria e, antes de tudo, como
teriam lá ido parar?
A apreensão
instalara-se como gato em sofá de dona, arranhando o tecido desfiado das suas
mentes desgastadas pelo turbilhão das sucessivas emoções, mais ou menos violentas,
a que vinham sendo sujeitos desde o fatídico dia 23 de Abril de 2013, dia da
partida.
Também no
tempo se encontravam perdidos, desconhecendo quantos dias haviam decorrido
desde então.
Valia-lhes
continuar a não sentir fome, frio, necessidade de abrigo ou qualquer outra
própria da sua natureza originária. Afinal, aparentemente, estavam num mundo
despojado de humanos. Seria por isso? Seria que tinham passado para outra
dimensão e perdido a natureza humana, confundindo-se com simples peças de
maquinaria duma estrutura gigantesca, cuja essência, natureza e sentido, todavia,
desconheciam por completo?
Assim se
interrogava Rita, enquanto Janete, sem ousar interrogar-se, tal era o medo das
possíveis respostas e, sobretudo, da sua falta, se encolhia contra o peito de
Miguel, procurando um abrigo, que este, por mais boa vontade que tivesse, lhe
não podia proporcionar, pois também ele desconhecia, em absoluto, as imposições do presente, quanto mais do futuro, mesmo o próximo.
Então, Rita
entendeu que, ao menos por agora, a única referência sólida que possuíam era o
passado e, sempre munida dum prático sentido de sobrevivência, interveio:
- Vocês querem
saber como eu conheci o Francisco?
E, sem esperar
pela anuência dos outros viajantes, continuou:
- Estava eu
sentada numa esplanada, lendo Mr. Vértigo, do Paul Auster, não sei se conhecem,
mas, para mim, é o seu melhor livro, ao menos dos 6 ou 7 que já li, e
Francisco, na mesa ao lado, não parava de me observar, como eu bem via, pelo
canto do olho. Já estava a sentir-me um pouco incomodada, quando ele se
levantou e dirigiu a mim, apresentando-se, - chamo-me Francisco – e perguntando se podia sentar-se à minha mesa.
Só então reparei, verdadeiramente, nele, como era interessante e como os seus
olhos azuis brilhavam, espalhando um sorriso que não me permitiu recusar o seu
pedido. – Como te chamas? - perguntou,
e eu – que tens a ver com isso?, oferecendo
o sorriso mais provocante que consegui encontrar no meu baú dos sorrisos. A
breve sombra que aflorou ao seu azul, desfez-se num instante, ao perceber que
eu brincava e insistiu, com gentileza e graça – tenho tudo a ver com isso, pois quero chamar-te pelo teu nome e não
atribuir-te um nome aleatório ou inventado. – Ah!, estou a ver, mas diz-me lá, que nome seria esse? – Bela, só podia ser Bela, respondeu, tão
pronta e sedutoramente, que me deixou desarmada. Só então anunciei, - Rita, chamo-me Rita.
Ao ouvir Rita
falar do namorado, Janete readquiriu a segurança anteriormente perdida e
perguntou:
- Então
tiveste um coup de foudre com o
Francisco? Sabes, foi isso que sucedeu entre mim e o Miguel, no dia em que ele
foi fazer uma palestra à minha universidade.
Miguel olhou
Rita apreensivamente, mas esta, tendo tomado por confidências as revelações
dele, como, salvo expressa indicação em contrário, sempre fazia com as
histórias que lhe contavam, logo o deixou respirar aliviado, quando,
dirigindo-se a Janete, respondeu:
- Ai sim? No
nosso caso, não se pode falar, verdadeiramente, em coup de foudre, mas sim numa intensa simpatia recíproca que se foi
multiplicando, à medida que nos conhecíamos melhor e nos íamos contando um ao
outro. Sim, porque, como deves calcular, a partir daquele encontro, começámos a
encontrar-nos com a frequência crescente requerida pelo nosso mútuo interesse.
Até que, um dia olhei para ele e não pude conter-me, - amo-te, disse. Pareceu-me que ele não esperava outra coisa, pois,
de imediato, beijou-me, demorada e apaixonadamente, concluindo, - também te amo. Muito.
Há quilómetros
atrás, o comboio começara a reduzir, significativamente, a velocidade, mas
eles, embalados como iam na história de Rita, nem se tinham apercebido. Todavia, naquele momento,
forte chiadeira sobrepôs-se ao encantamento da distracção, violento soluço
agitou-os nos seus lugares e com isto se lhes anunciou a – para eles – abrupta
frenagem do comboio.
Olharam em
redor, a neve ou gelo ou glaciar tinham desaparecido, apenas um cais, escuro a
perder de vista.
Desceram,
pisaram o cais, seguiram em frente e, pouco depois, um parco jorro de claridade,
exalado por um velho néon, que
desenhava estranhos símbolos, parecendo construir uma palavra, indicou-lhes uma
porta.
Enquanto
apressavam o passo, Miguel disse:
- Animem-se,
Meninas, palavras à vista, humanos em perspectiva!
- Isso é o que
vamos ver – interveio Rita, com o olhar céptico, que, mesmo sem querer ser
desmancha-prazeres, ostentava, sempre que a indefinição da realidade não dava
mostras de colaborar com o esclarecimento.
Todavia, Janete,
empenhada em solidarizar-se com Miguel e, sobretudo, sempre pronta a deixar-se
embalar por contos de fadas, redarguiu:
- Não sejas
desmancha-prazeres, Rita. O Miguel tem razão.
Miguel sorriu,
contente com aquele reconhecimento.
Era assim, Miguel,
como a maior parte dos homens, gostava que concordassem com ele, que lhe
provassem, desse modo, a certeza do seu valor, condição da sua segurança. Como se todo o pensamento divergente fosse uma afronta pessoal!
Janete
regozijou-se, com o reconhecimento do seu reconhecimento.
Rita não pôde deixar
de pensar na fragilidade e inconsistência da mente humana, tão necessitada de
reafirmações externas para se credibilizar perante si própria.
E assim, cada
um entregue aos seus pequenos regozijos e pensamentos, prosseguiram em direcção
à porta, que, estranhamente ou talvez não – afinal, não era a estranheza o denominador
comum daquele mundo? -, parecia cada vez mais longínqua.
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