domingo, 12 de abril de 2020

42º DIA DAQUILO: UMA CASA AZUL


No início da situação de pandemia (Covid-19) que se abateu sobre nós, tive natural curiosidade, aliás, interesse, em seguir os noticiários e outras fontes de informação, para tentar compreender, tanto quanto possível, a natureza do fenómeno e a melhor forma de me defender. 

Na condição de leiga, rapidamente concluí estar de posse da (pouca) informação (credível) necessária e suficiente para tais objectivos, sobretudo o da auto-defesa. Passei a cingir-me às fontes oficiais, temperadas com uma certa dose de bom-senso (v.g., sempre me pareceu preferível o uso de máscara...).

Concentrei-me no objectivo que me pareceu prioritário: adaptar-me à inusitada situação, colocando de lado o medo e o desconforto, sem esquecer a atenção devida às cautelas necessárias.   

Este processo (mental) implica não pensar demasiado no assunto, principalmente, nos vários "ses", "efeitos colaterais" e "amanhãs que choram" que o mesmo necessariamente comporta e manter-me produtivamente ocupada.

Em geral, tem corrido bastante bem, obviamente, com recurso a ferramentas de racionalização. Todavia, um dia destes, dei comigo a sofrer uma forte chamada à realidade: um carro da polícia passou pela minha rua, espalhando, por altifalante, uma mensagem de aconselhamento à permanência em casa. 

Curiosamente, este facto – e não, por exemplo, a indicação do número de infectados/mortos/recuperados – foi o suficiente para me levar ao fulcro do absurdo (por novidade e carência de defesa) da situação. Senti um calafrio ainda antes não experimentado. Um acontecimento tão banal e as emoções a deitarem as garras de fora (são f******, as emoções)!

Rapidamente me recompus, mas aquilo ficou a ruminar e senti que tinha de o deitar cá para fora. Tentei a forma narrativa, mas não fiquei satisfeita. Então, uma destas noites, no período de transição para o sono – pródigo em tantas ideias criativas, umas salvas outras não – dei comigo a pensar numa casa azul que se confundia com o azul do céu. Aparentemente, nada tinha a ver com o assunto, mas acabou por se revelar doutra maneira...

... como poderá confirmar-se com a história de

uma casa azul


no cimo da montanha mais alta havia uma casa azul
azul era a casa, azul era o céu
confundiam-se no azul comum

à distância não se podia distinguir
apenas imaginar
(embora a imaginação conseguisse por no cimo da montanha
uma casa ou um pássaro
uma pessoa, um peixe, um elefante
uma salsicha, um carro, uns patins
qualquer coisa que não se visse
desde que azul
até um céu dentro do céu
ou um inferno
desde que azul)
na realidade, não dava para distinguir
justamente pelo azul
o azul da casa, o azul do céu

um dia a casa veio por ali abaixo aos trambolhões
à distância, ninguém percebeu tratar-se de uma casa
só que era azul
mais perto já não dava para perceber
pois a casa tinha-se desmembrado na descida
apenas farrapos soltos de azul
as pessoas pensaram tratar-se de pedaços de céu
cansados das alturas

olharam para cima e o céu estava cinzento
não podem ser pedaços de céu despenhados lá do alto
pensaram
"podem – disse alguém –
sucede que o resto do céu ficou cinzento de tristeza
devido ao abandono a que foi votado pelas franjas de azul cadentes"

e podia, podia bem ser assim
mas podia ser uma casa azul, como afinal tinha sido uma casa azul
embora eles não soubessem
nem sequer no recanto da sua imaginação
estavam habituadas a ver coisas conhecidas
bem definidas
coisas e formas e cores com que podiam contar

depois deu-se aquilo
uma casa azul que sempre estivera no cimo da montanha mais alta
azul da cor do céu, com o qual se confundia
de tal forma que, à distância, não se podia distinguir
apenas imaginar
mas que ninguém ousara imaginar
despenhou-se por ali abaixo 
e ninguém percebeu o que era
confundida com pedaços de céu, só pela cor azul

ninguém estava preparado para acolher o desconhecido
lidar com o desconhecido

os pedaços da casa azul caídos por aí abaixo
revelaram-se agressivos
não por maldade, mas por razão lógica
afinal, eram restos de material de construção, lascas de madeira
franjas de cimento, esquinas de azulejos 
e tantos mais objectos cortantes e contundentes

aproximaram-se das pessoas, ignorantes daquele azul
furaram-lhes a pele e as carnes
partiram-lhes ossos
deixando-as loucas de pavor
porque estavam feridas, algumas mortas
desconheciam o agente daquela agressão
não estavam preparadas para contra-atacar

após uns dias de confusão, as pessoas organizaram-se
lançaram hipóteses e arquitetaram defesas
faltavam-lhes, todavia, as respostas para aquele azul
tão súbita e violentamente desabado sobre elas
andavam ocupadas naquilo, umas a morrer, outras a sobreviver
tentativa e esforço, desespero e esperança
força, muita força

algumas esqueciam por momentos
ou fingiam esquecer, para melhor aguentar  

até que, certo dia, um carro da polícia, armado de megafone
varreu as ruas devagar, gritando a mensagem
clara e perenptória
"ACORDEM!
MANTENHAM-SE LONGE DOS FRAGMENTOS AZUIS
DESPENHADOS DO CIMO DA MONTANHA MAIS ALTA"

e as pessoas esquecidas não puderam deixar de despertar do esquecimento

mas ainda ninguém sabia que se tratava de uma casa azul
que, de um momento para o outro, decidira rebolar por aí abaixo
espalhando destruição e morte e medo...

e, no entanto, era apenas uma casa azul
uma inesperada casa azul
só porque as pessoas não souberam distingui-la do céu azul
nem revelaram atenção ou capacidade para a imaginar

só mais tarde, para muitos tarde de mais
veio a saber-se que era tão só uma casa azul
azul da cor do céu






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