segunda-feira, 6 de abril de 2020

LOGO HOJE, QUE PUS RÍMEL, DEU-ME PARA CHORAR!


Desceu as escadas, quarenta e uma, viu o correio – apenas por força do hábito, não que esperasse encontrar correspondência – e saiu, certificando-se de que a porta ficava convenientemente fechada. Nos tempos que corriam todo o cuidado era pouco!

A atmosfera nada tinha a ver com a de há dias, tão poucos dias, quase a véspera, mas parecendo soterrados numa caverna prestes a esvair-se no esquecimento. E, todavia...

Todavia, ainda dois dias antes, a cidade explodia numa efervescência borbulhante. Olvidando até a crise mais recente – não que se situasse num tempo muito longínquo –, parecia inebriada numa bebedeira de negação eufórica e, simultaneamente, de optimismo bacoco e desvairado. As pessoas transbordavam dos espaços de restauração e divertimento, dispostas a gozar a ilusão presente, como se não houvesse amanhã. E, todavia...

Todavia, de um momento para o outro, ou melhor, de um dia para o outro, surgiram notícias inquietantes, a respeito de um mal desconhecido e inesperado. Vinham de longe, mas não era difícil imaginar que esse mal havia de chegar perto, pois, bem vistas as coisas, por essa altura, o que mais proliferava era tráfego (e tráfico) constante entre todas as cidades. Portanto, mais cedo ou mais tarde, há-de chegar cá, pensaram os mais realistas; os outros preferiram admitir que não, nada garantia que se abatesse por aqui. Obviamente, estavam enganados. E, todavia...

Todavia, quando aquilo chegou – porque, uma vez libertado do seu covil primitivo, não podia deixar de chegar, tal a sua sede de expansão e conquista e a inabilidade dos humanos em o deterem –, quer os realistas quer os outros ficaram expostos na mesma proporção, porque aquele mal não distinguia as vítimas, ao menos em função dessa tipologia.

As autoridades das diversas cidades foram apanhadas de surpresa e, presas nas malhas da estupefacção perante a novidade e o potencial destruidor da ameaça e a falta de meios para a deter, baralharam-se em comunicados e medidas, avançaram e recuaram, corrigiram linhas de acção, mas, as mais ajuizadas, cedo ou tarde, acabaram por recomendar aos cidadãos que se protegessem daquilo, fornecendo certas pautas para o efeito. 

Assim, naquele dia, quando saiu à rua, fê-lo apenas porque tinha de ser – o armazenamento de bens essenciais, maxime, livros, estava prestes a esgotar-se e ela precisava de encontrar alguns antes que aquilo os tivesse devorado todos –, e muniu-se das máximas cautelas recomendadas: vestiu o fato macaco de material à prova de dentada, por força da inserção de espigões super afiados, calçou botas até ao joelho e luvas até ao cotovelo, munidas das mesmas protecções, e protegeu a cabeça com um capacete rígido, dotado de viseira. Considerou-se pronta para desafiar o destino!

Ao primeiro passo fora da porta, viu-as logo aproximar-se, qual exército de ogres revestidos por carapaças castanhas escuras, quase negras, com olhos malignos e exorbitantes, prenuciando uma fome assassina. Sabia que também elas, estas bestas nojentas e rastejantes, fugiam daquilo, mas nem por isso se sentiu solidária. Pisou-as com as botas rijas e, à medida que ouvia o estralejar da destruição – craccraccrac –, aumentava nela uma sensação de vitória: Talvez "aquilo" também não seja à prova de bota, ainda ninguém o conhece muito bem, pensou, para, de imediato, se censurar pelo excesso de optimismo.

A destruição semeada afugentou o resto do exército de baratas gigantes, pelo que pôde continuar, entre o alívio, o nojo e o medo de que aquilo lhe aparecesse de repente e resistisse à sua defesa. 

Sempre alerta, prosseguiu, ora se afastando, ora lutando com outras hordas de guerreiros dispostos a tudo, fossem cães raivosos que lhe cobiçavam as canelas, aves de penas negras que mergulhavam a pique no seu capacete e muitos outros. Valia-lhe a resistência do fato e, sobretudo, a armadura  de espigões.

Já exausta do percurso acidentado e violento, chegou, finalmente, ao que restava da última livraria, cujos empregados se tinham visto obrigados a desertar, se é que não haviam sucumbido àquilo

Apesar da tristeza infundida pelo estado de penúria e destruição do espaço – outrora (um outrora de há meros dias) tão belo e inspirador! –, entusiasmou-se com a hipótese de, por entre os destroços das prateleiras,  poder resgatar um livro, um que fosse,  que lhe servisse de sustento para o tempo que aquela funesta situação ainda demoraria a desaparecer.

Sempre alerta, aproximou-se e, de repente, viu-o, aquilo, entretido a roer o último pedaço do último livro sobrado no chão da livraria.

Tratava-se de um rato, aparentemente um vulgar rato, excepto na enormidade do tamanho, de cor cinzento rato, dotado de olhos sinistros, com os bigodes semeados de farripas da última página do livro. A capa jazia no soalho, desprezada, talvez por lhe ser muito dura de roer. Oferecia as seguintes palavras: A Peste, Albert Camus.

Ainda hesitou em recolher a capa, mas o bom senso aconselhou-a a aproveitar a concentração do rato para se afastar dali o mais rapidamente possível. 

Franqueou a porta da rua e subiu no elevador, onde ainda teve de fazer frente a um grupo de baratas moribundas, mas  ainda activas – craccrac, crac, ecoaram as paredes.

Mal entrou em casa, desabou num choro convulso. Passou a mão pelo rosto, e, ao ver o negrume das lágrimas, desabafou, por entre soluços, como quem pede colo: Logo hoje, que pus rímel, deu-me para chorar!






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