segunda-feira, 6 de abril de 2020

LOGO HOJE, QUE PUS RÍMEL, DEU-ME PARA CHORAR!


Desceu as escadas, quarenta e uma, viu o correio – apenas por força do hábito, não que esperasse encontrar correspondência – e saiu, certificando-se de que a porta ficava convenientemente fechada. Nos tempos que corriam todo o cuidado era pouco!

A atmosfera nada tinha a ver com a de há dias, tão poucos dias, quase a véspera, mas parecendo soterrados numa caverna prestes a esvair-se no esquecimento. E, todavia...

Todavia, ainda dois dias antes, a cidade explodia numa efervescência borbulhante. Olvidando até a crise mais recente – não que se situasse num tempo muito longínquo –, parecia inebriada numa bebedeira de negação eufórica e, simultaneamente, de optimismo bacoco e desvairado. As pessoas transbordavam dos espaços de restauração e divertimento, dispostas a gozar a ilusão presente, como se não houvesse amanhã. E, todavia...

Todavia, de um momento para o outro, ou melhor, de um dia para o outro, surgiram notícias inquietantes, a respeito de um mal desconhecido e inesperado. Vinham de longe, mas não era difícil imaginar que esse mal havia de chegar perto, pois, bem vistas as coisas, por essa altura, o que mais proliferava era tráfego (e tráfico) constante entre todas as cidades. Portanto, mais cedo ou mais tarde, há-de chegar cá, pensaram os mais realistas; os outros preferiram admitir que não, nada garantia que se abatesse por aqui. Obviamente, estavam enganados. E, todavia...

Todavia, quando aquilo chegou – porque, uma vez libertado do seu covil primitivo, não podia deixar de chegar, tal a sua sede de expansão e conquista e a inabilidade dos humanos em o deterem –, quer os realistas quer os outros ficaram expostos na mesma proporção, porque aquele mal não distinguia as vítimas, ao menos em função dessa tipologia.

As autoridades das diversas cidades foram apanhadas de surpresa e, presas nas malhas da estupefacção perante a novidade e o potencial destruidor da ameaça e a falta de meios para a deter, baralharam-se em comunicados e medidas, avançaram e recuaram, corrigiram linhas de acção, mas, as mais ajuizadas, cedo ou tarde, acabaram por recomendar aos cidadãos que se protegessem daquilo, fornecendo certas pautas para o efeito. 

Assim, naquele dia, quando saiu à rua, fê-lo apenas porque tinha de ser – o armazenamento de bens essenciais, maxime, livros, estava prestes a esgotar-se e ela precisava de encontrar alguns antes que aquilo os tivesse devorado todos –, e muniu-se das máximas cautelas recomendadas: vestiu o fato macaco de material à prova de dentada, por força da inserção de espigões super afiados, calçou botas até ao joelho e luvas até ao cotovelo, munidas das mesmas protecções, e protegeu a cabeça com um capacete rígido, dotado de viseira. Considerou-se pronta para desafiar o destino!

Ao primeiro passo fora da porta, viu-as logo aproximar-se, qual exército de ogres revestidos por carapaças castanhas escuras, quase negras, com olhos malignos e exorbitantes, prenuciando uma fome assassina. Sabia que também elas, estas bestas nojentas e rastejantes, fugiam daquilo, mas nem por isso se sentiu solidária. Pisou-as com as botas rijas e, à medida que ouvia o estralejar da destruição – craccraccrac –, aumentava nela uma sensação de vitória: Talvez "aquilo" também não seja à prova de bota, ainda ninguém o conhece muito bem, pensou, para, de imediato, se censurar pelo excesso de optimismo.

A destruição semeada afugentou o resto do exército de baratas gigantes, pelo que pôde continuar, entre o alívio, o nojo e o medo de que aquilo lhe aparecesse de repente e resistisse à sua defesa. 

Sempre alerta, prosseguiu, ora se afastando, ora lutando com outras hordas de guerreiros dispostos a tudo, fossem cães raivosos que lhe cobiçavam as canelas, aves de penas negras que mergulhavam a pique no seu capacete e muitos outros. Valia-lhe a resistência do fato e, sobretudo, a armadura  de espigões.

Já exausta do percurso acidentado e violento, chegou, finalmente, ao que restava da última livraria, cujos empregados se tinham visto obrigados a desertar, se é que não haviam sucumbido àquilo

Apesar da tristeza infundida pelo estado de penúria e destruição do espaço – outrora (um outrora de há meros dias) tão belo e inspirador! –, entusiasmou-se com a hipótese de, por entre os destroços das prateleiras,  poder resgatar um livro, um que fosse,  que lhe servisse de sustento para o tempo que aquela funesta situação ainda demoraria a desaparecer.

Sempre alerta, aproximou-se e, de repente, viu-o, aquilo, entretido a roer o último pedaço do último livro sobrado no chão da livraria.

Tratava-se de um rato, aparentemente um vulgar rato, excepto na enormidade do tamanho, de cor cinzento rato, dotado de olhos sinistros, com os bigodes semeados de farripas da última página do livro. A capa jazia no soalho, desprezada, talvez por lhe ser muito dura de roer. Oferecia as seguintes palavras: A Peste, Albert Camus.

Ainda hesitou em recolher a capa, mas o bom senso aconselhou-a a aproveitar a concentração do rato para se afastar dali o mais rapidamente possível. 

Franqueou a porta da rua e subiu no elevador, onde ainda teve de fazer frente a um grupo de baratas moribundas, mas  ainda activas – craccrac, crac, ecoaram as paredes.

Mal entrou em casa, desabou num choro convulso. Passou a mão pelo rosto, e, ao ver o negrume das lágrimas, desabafou, por entre soluços, como quem pede colo: Logo hoje, que pus rímel, deu-me para chorar!






segunda-feira, 30 de março de 2020

29º DIA DAQUILO: MALUCOS AO ATAQUE!


Ontem, armada de máscara, luvas e ousadia, aventurei-me a ir ao supermercado, desporto a que já não me dedicava desde o dia em que foi, e bem, decretado o estado de emergência. Faltavam umas coisas, nomeadamente, chocolates, o que me vinha causando um inusitado estado de carência, atrevo-me a dizer, síndrome de abstinência.

Meti-me no carro e fui a um Pingo Doce, não longe aqui de casa.

Circulavam poucas pessoas e veículos, o que conferia à cidade um aspecto triste, inspirando, contudo, um sentimento de segurança, pela presunção de que a maior parte já atinou e está a proteger-se, o que simultaneamente redunda em protecção de todos.

Estacionado o carro – mesmo à frente do supermercado, outra raridade! –, entrei sem necessidade de aguardar em fila e encontrei poucas pessoas lá dentro. Óptimo, pensei, sentindo-me um pouco menos culpada por não ter optado por encomendar online e mais fortalecida para a realização da tarefa.

Entusiasmo de pouca dura, confesso! O meu radar auto-flagelador desatou logo em funcionamento, passando a assinalar:

– Funcionários sem máscaras ou luvas (diferentemente do que presenciara num Auchan e num Aldi, das únicas duas vezes em que saí, desde que esta cena do Covid-19 começou);

– Uma mulher jovem a apalpar todos os quivis que se lhe apresentavam à frente. Não só porque também queria quivis, mas principalmente por uma questão de civismo, disse-lhe, a um mínimo de dois metros de distância, "esse seu comportamento é muito pouco cívico, especialmente agora"; prossegui sem aguardar resposta;

– Mais à frente, na secção dos queijos, estavam dois homens jovens, seguramente indecisos, a manusear e restituir à prateleira embalagens. Fiz-lhes o mesmo responso, olharam-me, mas não responderam, certamente assustados por avistarem fumo a sair da minha máscara (sim, por esta altura, já me sentia a fumegar e quase a gritar, "tirem-me deste filme!"). Esperei que debandassem e fui buscar os meus queijos, evitando pegar nas embalagens que eles estiveram a manusear, mas com a (deprimente) certeza de as que seleccionei já terem sido manuseadas por outros;

(Um dia destes ainda hei de discorrer sobre esta mania de os portugueses apalparem ou acariciarem ou lá o que é a fruta e as embalagens dos supermercados, pão incluído.)

– Pouco adiante, ouço um monumental espirro, vindo do que calculo ser uma distância inferior a dois metros. Olho, espavorida, creio que com os olhos a caminho da testa, e constato que o espirro proveio da bocarra desprotegida dum tipo aí dos seus quarenta anos, com um ar completamente alucinado. Sem se assustar com o meu olhar em transe, ainda teve a distinta lata de proferir, em tom de brincadeira aparvalhada: "Ui, ui, olha que eu mato-te!"

Como sempre ouvi dizer que com malucos nem para o céu, pus-me a milhas, prosseguindo as compras noutro departamento. Então não é que o dito esgrouviado estava sempre a cruzar-se comigo! Parecia que a sua missão era andar a fazer gincana pelo supermercado. Cada vez mais inquieta, esqueci a lista das compras e comecei a meter no carro aquilo de que lembrava e me aparecia pelo caminho;

– Se foi tudo? Por incrível que pareça, o melhor ainda estava para vir! Encontrando-me já, apressadamente – com mais desejo de sair dali do que de ganhar o euromilhões –, a colocar os artigos no tapete da caixa, aí a meio da operação, reparo numa senhora praticamente encostada ao meu carrinho, ou seja, a respirar para cima das compras! Já a tinha topado lá dentro, pelo aspecto estranho e por ter uma pomada branca à volta duma das narinas, indicando um possível herpes, talvez devido a um acesso de febre (gripe, Covid-19?, interrogara-me). 

Aquela manifesta invasão dos meus dois metros, incomodou-me sobremaneira. Pedi-lhe que respeitasse esse perímetro. Com ar monocórdico e aparvalhado, absolutamente consentâneo com a aparência, respondeu: "Mas eu estou a dois metros da senhora." Redargui que não, mas ela insistiu, tipo cassete do PC. Para evitar um ping-pong para que careço de vocação ou paciência, retorqui, "Então, afaste-se para quatro metros". Não se mexeu! 

Enquanto prosseguia a minha tarefa – absorta no pensamento, não me bastava um maluco por dia, tenho que levar com dois e ainda nem são quatro da tarde –, uma funcionária veio avisar a senhora desrespeitadora de perímetros de segurança de que podia seguir para uma caixa vaga, mesmo ali ao lado. Confesso que, nesse momento, sofri um arrebatamento de paranóia, admitindo, a maluca da gaja pôs-se aqui, de propósito, a tentar infectar as minhas compras, só pode!

Mas não, desenganem-se, ainda não foi tudo! Estando a pagar, vejo a dita cuja avançar para a minha caixa, para se dirigir à funcionária, agradecendo-lhe não sei o quê (creio que o facto de não ter intervindo, quando da nossa conversa); de seguida, com o tom monocórdico e aparvalhado de sempre, disse-me: "espero que o Covid lhe caia em cima." Gentilmente, resporqui, "Obrigada!", ficando a imaginar se a resposta a terá apaziguado... ou não; seja como for, desandou. 

Agora é assim, não sou de superstições nem de (outros) medos atávicos, mas se, após tão extraordinários encontros, não apanhar o bicho, é porque o meu Anjinho da Guarda anda mesmo atento e toma muito bem conta de mim.

Todavia, neste momento – em que, talvez um pouco levianamente, imagino os dois malucos conluiados na feitura duma boneca vudu, armada de máscara e luvas, com os olhos na testa e os pulmões crivados de alfinetes –, tomei três decisões:

– Passar a fazer compras online;

– Aguardar, calmamente, os próximos 14 dias, só para confirmar se o Universo leva a sério os estranhos desígnios de dois seres perturbados;

– Sugerir ao Primeiro-Ministro que, no quadro do estado de emergência, adite a seguinte medida: criação da BPCMS, Brigada Para Controlo de Malucos à Solta.


(Imagem editada, obtida em pesquisa Google)






sexta-feira, 27 de março de 2020

26º DIA DAQUILO


O Covid-19 instalou-se no nosso país no passado dia 2. Entretanto, acabou por nos mandar todos recolher ao covil – todos, não, infelizmente alguns sofreram destino menos bom.

Escrevo, pois, do covil, no que talvez pretenda ser uma espécie de diário (eu, que nunca mantive um, apesar de escrever o que me passa pela mona desde a adolescência!) Digo, talvez pretenda ser, porque não estou em condições de garantir tal tipo de assiduidade, primeiro, porque sou indisciplinada e a minha rotina consiste na falta de rotina, segundo, porque, neste confinamento, é bem possível que a matéria de escrita escasseie. Quiçá passe a semanário, mensário, anuário, etc.

Por exemplo, hoje, ainda nada de significativo há a registar. 

Em contrapartida, ontem acordei com a animadora notícia de que o vinho pode curar o maldito vírus!

Fiquei, obviamente, encantada, não porque precise de autorização ou fundamento benigno para beber. Aliás, nem tenho por hábito beber (embora por razões dietéticas, pois é sabido que o vinho engorda), e, nos períodos em que o faço, uma garrafa das pequenas dá-me para várias vezes, no mínimo, quatro.  

O que mais me empolgou da dita notícia foi pôr-me a imaginar o bom povo português, irmanado numa jubilosa bebedeira colectiva, assomado às janelas a cantar e a bater palmas (alguns a vomitar), mandando o Covid-19 para onde não posso aqui dizer, e já esquecidos do heroísmo dos profissionais de saúde.

Esta visão foi acompanhada pela do minúsculo vírus (e suas milhentas réplicas), a esbracejar e sufocar, num tsunami vinícola, pronto a ir desta para aquela que o pariu.

Foi neste estado delirante que, lá para a uma da tarde – para quê a pressa! –, tomei o pequeno almoço e me apercebi de que algo não estava bem: dores no corpo, falta de forças, garganta a arranhar e nariz entupido. 

Adivinharam, perguntei-me logo: será que o cabrão me apanhou? Respondi, de imediato: Ora, ora, isto não passa dum resfriado, afinal ontem apanhei um bocado de frio, quando me sentei à secretária a tratar online de vários assuntos pendentes e a pender. Tem lá calma! Ainda me ocorreu a linha SNS24, mas não me apetecia ficar pendurada, sem atendimento, como me sucedera algum tempo atrás.

Ainda prossegui com as arrumações em curso (nesse aspecto, viva a quarentena, que isto do antigo hábito de andar sempre a saltitar de um lado para o outro, não é consentâneo com a organização do lar, ao menos no grau requerido por uma maníaca da ordem), mas, a dado passo, a falta de forças era muita e decidi regressar ao vale de lençóis. Fui dormitando e acordando, inquieta, parecendo-me que com falta de ar, mas logo respirava fundo e constatava tratar-se de pura partida de algum resquício hipocondríaco mal disciplinado.

Pus-me a ler uma biografia do Maquiavel, que estou prestes a acabar. A seguir não posso deixar de reler o seu (do Maquiavel) magnífico O Príncipe. Espero não me desiludir, visto tratar-se de um dos livros que mais me marcou (por vezes, ocorre a desilusão, ao relermos obras que, em tempos apreciámos, e isso dói, à semelhança de quando perdemos um amigo).

Ah! entretanto, hoje acordei quase totalmente recuperada. 

De momento, só posso queixar-me de estar a sofrer de síndrome de privação: acabaram-se-me os chocolates!







sexta-feira, 20 de março de 2020

COVIDO-TE A ENTRAR: NOVAS OPORTUNIDADES COVID-19


Sei que já não há paciência para falar/ouvir falar do nem-digo-o-nome, mas factos são factos, não vale a pena ignorá-los. Aliás, devemos ir além, ou seja, desvendar como usá-los a nosso favor.

Ora, impedida pelo nem-digo-o-nome (pronto, refiro-me ao Covid-19) de andar por aí a almoçar fora e a comprar comida feita, vi-me obrigada a desencantar dotes culinários onde nunca imaginei que pudessem existir.

Comecei por confeccionar e congelar uma catrefada de hamburgers, o que, afinal, não custou assim tanto: foi só colocá-los directamente numa frigideira anti-aderente (até pensava que se chamava anti-derrapante), juntar um pouco de sal e deixar grelhar muito bem (gosto bem passado), virando dum lado e doutro, retirar, pôr a arrefecer, enfiar em embalagens individuais e meter no congelador! Parecem demasiadas operações, mas posso confirmar serem relativamente rápidas.

Entretanto, comprei tomates cherry e cenouras baby, que basta lavar e pôr no prato, eventualmente, com um pouco de azeite e vinagre (mas estes já existem feitos, nuns frascos, o que facilita imenso).

Desconhecendo quando poderia obter novos hamburgers e, sobretudo, se teria disponibilidade psicológica para os cozinhar, dei em consumi-los com assinalável parcimónia.

Mas a gente tem de se alimentar e, quando, para isso, é imperioso ir para trás dos fogões, parece que a comida desaparece mais depressa (aliás, julgo ser esse o motivo por que sempre embirrei com a cozinha, por ser um trabalho inglório, muitas horas de volta das panelas e depois, vai-se a ver, desaparece tudo num instante e lá tem de se recomeçar).

Assim, dei comigo a intervalar os hamburgers com sanduíches de presunto, queijo ou mistas. Obviamente, também introduzi as conservas, atum, sardinhas, bacalhau... De resto, gosto muito, sobretudo do atum, mas, não tendo cá arroz – e, mesmo que tivesse, desconheço como se cozinha –, não pude seguir as pegadas da Assunção Cristas. Optei por recorrer aos benditos tomatinhos cherry.

Compuz um prato de aparência gourmet, que poderia descrever-se assim: lascas de bacalhau em cama de cherry, polvilhadas com lâminas de azeitona verde e areias de amêndoa torrada (ingredientes estes que aditei, na esperança, conseguida, de animar o prato; e, também, porque, à semelhança do azeite e do vinagre, já se compram prontos a usar). Tenho a dizer que ficou com muito bom aspecto e delicioso.

Todavia, quis a vida voltar a empurrar-me para os cozinhados. Não é que os srs. drs. começaram a censurar o consumo de legumes crus?! Vai daí, resolvi dar aos tomatinhos o tratamento por que fizera passar os hamburgers: banho de frigideira anti-aderente, desta feita, com a mediação de um pouco de azeite. Ficaram fantásticos, simplesmente deliciosos (para além da descoberta que constituiu, para mim, isto de ser possível fritar tomates)! 

O mais importante é que, daí para cá, tenho andado num alvoroço entusiasmado e criativo, a pensar que, mal isto do nem-digo-o-nome acabe, vou lançar-me na restauração, com um espaço gourmet (obviamente, especializado em tomates cherry). 

Inclusivamente já pensei no nome: COVIDO-TE A ENTRAR!


Imagem obtida em pesquisa Google




terça-feira, 17 de março de 2020

#COVID-19 DESCOMPLICADO


Havia um morcego que, para mal dos seus pecados – e são muitos os pecados atribuídos aos morcegos, desde logo por associação aos vampiros, via Drácula e afins –, era habitado por um jovem descendente da família #Coronavírus, aliás, distinta família (nem doutro modo exibiria tal nome, derivado do uso de coroa).

Certa noite, enquanto descansava pendurado de cabeça para baixo, como é hábito dos seus, sentiu um desvairado apetite por sangue fresco de cobra. Saiu para caçar e, ao sobrevoar os arredores do mercado da cidade chinesa de #Wuhan, deparou com um belo espécime de saborosa – pensou ele, babando – réptil. Vai daí, em mergulho certeiro, desabou-lhe sobre o lombo e ferrou com gosto.

Ora, o jovem descendente da aristocrática família Coronavírus que habitava no morcego e que, tomado de indómita juventude, ansiava por desbravar novos mundos, o mesmo é dizer, novos hospedeiros, aproveitou a oportunidade sem perda de tempo e zás: no lapso de segundo decorrido entre o abrir e cerrar da boca do morcego sobre o dorso da cobra, libertou-se, entranhando-se nesta.

Mais tarde, a bicha rastejante sentiu uma impressão desagradável no lombo, que se apressou a atribuir à mordedura do malvado vampiro (como se lhe referiu mentalmente, não fosse ela versada no célebre romance Drácula, do Bram Stoker, e outros do género,  e não tivesse visto todas as versões cinematográficas do mesmo e afins). 

Pouco depois, achando-se apanhada à traição por um chinês, viu-se a caminho do referido mercado. Bem sabendo a sorte que a esperava, deixou de pensar na mordidela e, apesar de ciente da sua impotência, jurou vingança (pobrezinha, ao menos desabafou, o que já pode ser considerado uma forma de vingança, embora ineficaz, sendo certo que a ineficácia constitui a negação da vingança... Enfim, filosofar para quê?!)

Tal como previra, acabou rapidamente comprada por um chinês capitalista – ao menos isso, iguaria fina como era não se destinava à boca de qualquer um, pensou, tentando conformar-se – e, pouco tempo decorrido, após cozinhada numa panela escura, era servida em banquete.

O adquirente, deliciado que estava com o requintado petisco, mal reparou numa impressão estranha na garganta, que se lhe insinuou ao engolir uma das últimas garfadas (bem, isto era se eles usassem garfos!).

Por essa altura, estava muito longe de saber que o jovem dos Coronavírus – sempre ansioso por desvendar novos mundos, e, sobretudo, novas modalidades de alojamento local – se evadira do corpo da infeliz cobra e, antes de ser empurrado para os andares de baixo, de onde certamente seria expelido para um esgoto, se agarrou fortemente à sua garganta, fincando-se com força e destreza até ele acabar a saborosa deglutição.

Só depois começou a visitar as diversas cavidades e reentrâncias do hospedeiro, ficando-se pelas superiores, que as lá de baixo inspiravam-lhe um não sei quê de desconfiança e nojo.

Dias volvidos, andava a passear, muito divertido, deslizando das fossas nasais para os brônquios do homem, como se aquilo fosse um escorrega, quando este se levantou e, aí sim, sentiu um desagradável formigueiro nas vias respiratórias e desatou a tossir uma tosse seca e impertinente, acabando por acordar a mulher. "Ó homem, vai mas é ver a febre e deixa-me dormir!", vociferou ela (que muitos chineses têm por hábito expressar-se aos gritos ou, pelo menos, fazendo muito barulho). O desgraçado encolheu os ombros e, sem tempo para medir a febre, embora sentido-se já a escaldar, dirigiu-se à fábrica, onde, por parco salário e substancial lucro próprio, dispunha de um batalhão de operários concentrados na confecção de roupa para a Zara, a Tommy Hilfiger e outras que tal, das mais económicas às mais dispendiosas.

Os operários, habituados a ver o patrão exibir uma saúde de ferro, estranharam o seu ar murcho e doente. Alguns ousaram aproximar-se para, entre vénias respeitosas, indagarem se estava tudo bem e se precisava de alguma coisa.

Em breve deixaram de o ver, mas, por essa altura, já se preocupavam exclusivamente consigo próprios, porquanto, lá na fábrica, aquilo virara um pandemónio, só tosse, espirros e gafanhotos a pulverizar os ares, para não falar na febre e dores de corpo. O mesmo se passava com parte dos familiares e amigos de muitos deles. Até que começaram a registar-se mortes, sobretudo entre os mais velhos e desvalidos, atacados de severas infecções pulmonares.

Enquanto isso, o jovem dos Coronavírus não cabia em si de contente, saltando de hospedeiro em hospedeiro e devorando pulmões a um ritmo alucinante, num descarado regabofe.

Como é dos livros, acabou por ser detectado e identificado, com atribuição de nome, #Covid-19 – o que o deixou num periclitante estado de ambivalência, por um lado, orgulhoso do reconhecimento com identidade própria, por outro, preocupado pela antecipação da guerra que a nova espécie de hospedeiros lhe iria mover até ao extermínio ou neutralização final (apesar de jovem ínfimo, não lhe faltava conhecimento da vida). 

Ciente do perigo, o Covid-19 resolveu que o melhor era aproveitar à fartazana, ao menos enquanto fosse livre de actuar. Vai daí, decidiu diversificar o campo de acção: com grande frenesim, multiplicou a actividade e cruzou fronteiras como se não houvesse amanhã.

Chegados a este ponto, os humanos (já não apenas chineses) e, sobretudo, os mercados – entidade abstracta e misteriosa que comanda o mundo, incluído o mundo do primeiro chinês visitado (e lixado) pelo Covid-19, aliás, exemplo ímpar do milagre do primeiro estado conseguido de comunismo-capitalista – revelavam assinalável (e compreensível) desnorte.

Se os humanos envidaram esforços para resolver a questão? Obviamente! Mas o certo é que, à medida que o tempo decorria e o Covid-19 continuava imparável e triunfante na sua senda assassina,  não surgia nada capaz de o deter, nem medicação específica nem vacina – há que ver que os ritmos da ciência são, naturalmente, outros. Em desespero, optou-se por lhe travar a propagação, mediante a adopção de medidas de distanciamento social.

Não vou prosseguir com o relato das patifarias do malvado – que infelizmente, a esta data, continuam sem solução à vista –, para isso já basta de telejornais e de redes sociais, notícias e teorias da conspiração, etc. 

Fixo-me, apenas, no elenco de algumas das primeiras vítimas ocorridas no nosso país:

Proverbial optimismo do primeiro-ministro António Costadando mostras de uma cautela (nele) inusitada, começou logo – honra lhe seja feita – por alertar para a necessidade de guardar distância social! A partir daí, gerou-se uma dinâmica de apostas sobre a magna questão de saber se ainda acredita em vacas voadoras. Crê-se que esta actividade é de molde a contrabalançar a crise económica engendrada pelo Covid-19 e a sossegar os mercados e as agências de rating.

Alegada hipocondria do Prof. Marcelo: completamente deitada por terra, dada a insistência deste em manter o comportamento beijoqueiro que tem sido a imagem de marca da sua missão presidencial. É claro que acabou a fazer o teste para o Covid-19, procedimento, todavia, não usado em relação às vítimas dos seus abraços e beijos. Depois disso, desapareceu para uma casa com varanda, onde só recentemente reapareceu para comunicar qualquer coisa. Todavia, como não se percebeu nada do que disse, ficou-se na dúvida se foi da tecnologia utilizada ou se lhe terá dado uma coisinha má – oxalá não, que estamos todos desejando tirar um selfie com ele, para festejar a reentré da quarentena. De qualquer das formas, as apostas estenderam-se a este campo.

Discurso sobre eutanásia: totalmente erradicado dos mídia e redes sociais! Não sou de intrigas, mas suspeito que pairam por aí umas esperanças derivadas das preferências etárias do maroto Covid-19.

Papel higiénico, a grande vítima: não resistiu ao Covid-19! Ou então ausentou-se para parte incerta, pois não há quem o veja nos locais habituais. Ou, ainda, rabo limpo é o que está a dar.

Hortas dos amigos: por indicação da simpática directora-geral de saúde, passaram a ser alternativa preferencial ao açambarcamento praticado nos supermercados, desporto este que, todavia, se vai mantendo. Consta que há pessoas a disfarçar as hortas sob enormes sacos de plástico para fugirem à ganância dos... amigos; ou então não, talvez esteja a confundir com o caso da senhora que foi vista num supermercado com a cabeça enfiada num saco de plástico. Já nem sei o que digo!





 




sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

MENINA BELA, MENINA MÁ



A menina era bela/ A menina era má. Parecia um anjo/ Comportava-se como um diabo.

Caracóis fartos e sedosos, dum louro quase branco, rodeavam-lhe a pele translúcida do rosto delicado, perfeito; olhos cor de mel/ Suas mãos finas deliciavam-se a torturar formigas e a submeter ao banho bonecas de papier maché.

Sabia que era bonita/ Saberia que era má?

Havia uma irmã: três anos de idade, menos quatro do que a menina, ainda mais bonita. E um irmão, igualmente lindo. Era meigo. Tinha nove anos.

A irmã morreu afogada, na piscina do jardim lá de casa. 

A menina irrompeu em casa aparentando desnorte e gritou, «A mana, a mana». A empregada perguntou, «O que tem a mana». A menina continuou a exibir desnorte, naquela repetição gritada, «A mana, a mana».

Não ouviu o choro desesperado que vinha lá de cima, do quarto do irmão. Ninguém ouviu.

Sem perda de tempo, a empregada correu para o jardim e viu a menina mais nova a boiar, de cabeça para baixo, mergulhada na água cintilante da piscina. Conforme pôde, entrou na água, nunca antes entrara numa piscina, só no rio da aldeia e só para lavar roupa. Apanhou a criança, agitou-a nos braços grossos e maternais. Gritou com quantas forças tinha. A senhora, mãe das meninas e do menino, acorreu ao estardalhaço. Arrancou a filha dos braços da empregada. Deitou-a sobre a relva, parecia um anjo caído. Soprou-lhe na boca, massajou-lhe o peito. Tudo em vão. Desmaiou nos braços do marido, chegado entretanto. 

A menina observou todas as manobras em silêncio, semioculta pelo tronco grosso duma árvore centenária. Um sorriso arrepanhava-lhe os lábios rosados e frementes.

O irmão continuava entregue a um choro desesperado, lá em cima, frente à janela do quarto, a ver tudo, sem se poder mexer. Tinha partido uma perna, em circunstâncias não muito claras. Por agora confinava-se a uma cadeira de rodas. Só o vidro da janela o separava do mundo, pelo menos, o mundo do jardim. Chorou até lhe secarem as lágrimas. Ninguém reparou nele, os adultos perdidos na morte da criança, a menina abandonada à observação.

Ainda bem que a menina não reparou no irmão...

Dispararam-se perguntas a todos, excepto ao menino, coitado do menino, confinado que estava à imobilidade da sua perna partida. A menina respondeu sempre com compostura: que estava a brincar com o cão, a correr pelo jardim, só deu conta quando se preparava para um mergulho. A empregada chorava e torcia o avental entre as mãos calejadas: que se tinha ausentado por breves momentos, para atender o telefone, que dissera à menina para não largar a bebé, que podia cair à água. A menina, com seu ar angélico e seus olhos-mel muito abertos numa coreografia de espanto, abanou a cabeça, desenhando uma negativa firme.

A empregada foi acusada de negligência e despedida.

Os pais nunca mais olharam para a menina da mesma maneira. O menino também não. Ficou triste, cada vez mais triste. Os pais, mergulhados no seu desgosto egoísta, esqueceram-se de olhar para o menino.

A menina cresceu sempre linda/ Sempre má. 

Cresceu, tornou-se mulher. A mulher era doce/ A mulher era perversa.

Ou assim se presume...








sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

UMA IDADE INDECOROSA: CATARSE


Há dias, fiz (muitíssimos) anos, aquilo a que chamo uma idade indecorosa. Sim, porque, a partir de determinada altura, fazer anos equivale a abanarem-nos à frente dos olhos os pérfidos números que o cartão de cidadão (CC) insiste em alardear aos quatro ventos, com aquela vozinha irritante e provocadora, de quem tem sempre razão e nunca se engana - como um ex-presidente da República  de má memória que por cá tivemos (só que, no caso deste, era mentira e no do CC, infelizmente, é verdade).

Não que me costume chatear por fazer anos. Ao menos, não dói, estou com as pessoas que amo, recebo presentes (isto é o menos, claro!), cantam-me alegremente os "Parabéns a Você" e, passadas umas horas, já esqueci a efeméride. Mas este ano foi diferente. Dei em embirrar com o dia do aniversário, naquilo que não pode deixar de ser considerado uma típica crise de idade (coisa por que já não me lembrava de passar desde aquela vez em que, sem preparação prévia, olhei para o espelho e constatei, atónita e desgostosa, olha, aconteceu, estou a ficar velha!).

Ora, este envelhecimento delatado pelo CC - ok, e corroborado por umas quantas rugas e certos efeitos duma crescente força da gravidade - não pode agradar a ninguém, sobretudo quando se tem a cabeça arejada e o corpo continua vivo e (ainda) não regista anomalias de monta. Bem, a mim não me agrada, embora, agora que parei para descrever o fenómeno, talvez ainda me agradasse menos se a cabeça e o corpo mostrassem inépcia e/ou debilidades indesejadas.

Como se não bastasse, chegado o temido dia, estava sob o efeito duma maldita indisposição gástrica ou figadal, presumivelmente decorrente do facto de, nos dias precedentes - sabe-se lá se para esquecer ou encontrar coragem! -, ter andado a dar nos queijos e nos chocolates. Vai daí, para além dos enjoos, sentia-me completamente destituída de forças, sem saber se teria energia para honrar o jantar e soprar as velas do bolo de aniversário.

Mesmo assim, a meio da tarde, lá me dirigi à Versalhes, a fim de levantar o dito bolo e respectivas velas. Acontece que os números das velas não se prestavam a equívocos, não eram daqueles que dão para duvidar da real idade (ou realidade), por exemplo, o 3 e o 4, que tanto podem significar 34 como 43! Já perceberam, era uma década que completava... ou iniciava, consoante a perspectiva.

Vai daí, o empregado - calhou ser aquele que sempre me tratou como uma rainha, de tal modo que, em crianças, os meus sobrinhos, suspeitando que ele nutria um fraquinho por mim, gozavam comigo, referindo-se-lhe como o tio -, muito simpático, deu-me os parabéns. Ora bolas - pensei - agora é que os malditos números já extravasaram o CC! Agradeci, embora ainda me tenha passado pela cabeça dizer que o bolo não era para mim, mas que entregaria os parabéns ao destinatário. Havia de valer de muito!

Bom, o jantar aconteceu, na companhia dos meus entes queridos (que é o mais importante!), consegui soprar as velas e preparei-me para enfrentar o futuro com a determinação, sentido de adaptação e, mais importante, o sentido de humor, a que costumo recorrer em situações de crise.

No dia seguinte, ainda debilitada, fui ao Corte Inglês, a fim de comer uma canja (é uma das sopas diárias e recomendo) e fazer umas compras. Cruzei-me, então, com um ex-colega de trabalho, uns anos mais novo do que eu,  que já não via há quase nove anos. Espanto dos espantos, mal olhou para mim, disse, com um brilhozinho apreciativo nos olhos, que não o deixou mentir, Está mais magra! Sorri, encantada, trocámos aquela conversa do costume - por onde tem andado, o que tem feito, etc. -, mas ele continuava com aquele brilhozinho e, ao despedirmo-nos, insistiu, Emagreceu e rejuvenesceu! E eu a sorrir e a pensar, Uau, aleluia!

É claro que este meu contentamento é sinal manifesto de que o cabrão do CC tem razão, pois, em jovem, não ligava nenhuma a elogios do tipo (com as devidas adaptações, claro, porque nem precisava de emagrecer nem de rejuvenescer, mas diziam sempre que parecia mais nova). Mas, que importa?! Senti-me mais feliz e com um novo trunfo para enfrentar o tal futuro.

Agora que fiz este percurso catártico, sinto-me em condições de prometer que, ao menos antes de completar mais uma década, não tenciono angustiar-me com o tema idade. Olha, que se lixe, é a vida! Haja os nossos seres queridos, saúde e ex-colegas a precisar de óculos!!!