domingo, 15 de junho de 2014

O DESAPARECIMENTO DO SR. MARQUÊS E O SR. PROFETA

 
Há dias, dei comigo a interrogar-me sobre o que será feito do Sr. Marquês e do Sr. Profeta, com a triste suspeita de que ambos tenham partido com a morte. Nem sei se deva dizer triste, pois triste parecia ser a vida deles, muito triste, abandonados na rua que cruza a da minha casa, nos poisos acidentais da calçada portuguesa que reveste os passeios ou ao abrigo do tecto improvisado pela reentrância dum prédio de esquina.
 
Assim, num repente, tomei consciência de ter deixado de ver o Sr. Marquês, e, no repente seguinte, apercebi-me da igual ausência do Sr. Profeta. Eram vizinhos de paradeiro.
 
O Sr. Marquês tinha um olhar altivo, de quem já foi relevante, melhor, de quem conserva a relevância em estado absoluto, fora de dúvidas, independentemente das aparências em contrário, independentemente dos olhares alheios e, mais ainda, da falta de olhares alheios. Um baraço segurava-lhe as calças, donde se projectava a proeminência do ventre. Sentava-se de cabeça erguida, olhava nos olhos de quem o olhava, como que estabelecendo um desafio, e não agradecia as ocasionais esmolas, como se estivesse muito acima da natureza hedionda da própria palavra esmola, quanto mais da palavra transformada em acto. Nunca falei com ele, nunca lhe soube o nome, mas a sua postura leva-me a chamar-lhe assim, o Sr. Marquês, se bem que tomaram muitos marqueses ostentar aquela aura altiva, aquela consciência de si e, sobretudo, de que as aparências nada são quando comparadas com as almas ou espíritos ou mentes ou lá o que for de quem é levado a vesti-las. Uma garrafa andava sempre por perto do Sr. Marquês, que, ocasionalmente, descansava o corpo - e, talvez, a mente - na calçada.
 
O Sr. Profeta era outra natureza, bem diferente, estava para além da relevância, possuía grandes barbas esbranquiçadas, embora tingidas duma espécie de fuligem, por certo devida à exposição permanente à poluição da rua, e cresciam para os lados, talvez porque a sujidade lhes desse uma espessura que as impedia de pender, por isso eu disse grandes barbas, em vez de longas barbas. Vivia enrolado em casacos ásperos - ou seriam trapos, mais pareciam! -, fosse Verão ou Inverno, tinha um olhar povoado de inquietação e angústia, que, de tempos a tempos, explodia num potente grito, cheio de aflição. Era assustador, aquele grito, não porque sugerisse a ameaça duma agressão aos passantes, mas porque significava um desgoverno, uma dor e um desassossego tão intensos, que causavam medo só de testemunhar - e de, testemunhando, idealizar a sua hipótese de explicação. Nunca falei com o Sr. Profeta, nunca soube o seu nome, mas aquelas barbas e a divagação perdida que morava no seu olhar levaram-me a chamar-lhe assim, Sr. Profeta. Vivia rodeado de garrafas, creio. Nunca o vi deitado no chão, talvez porque o seu corpo e, sobretudo, a sua mente, não tinham como descansar. Sentava-se sobre uns trapos e soltava os seus gritos espantosos e espantadores.
 
Eu olhava para ambos, orgulhava-me da arrogância do Sr. Marquês e afligia-me com a angústia do Sr. Profeta, talvez porque ambos eram espelhos em que pessoas atentas e, principalmente, empáticas, não podem deixar de se reconhecer, espelhos que retribuem a imagem daquilo em  que cada um de nós também poderá tornar-se, mas, sobretudo, a imagem das pessoas que somos, enquanto elementos duma sociedade que permite que seus iguais possam tornar-se naquelas aparências, quando, na realidade, eles são PESSOAS!
 
Atenção, isto não é ficção - género a que, ultimamente, me tenho dedicado mais - e também não é um choradinho. É, na verdade, o testemunho da minha memória daqueles dois senhores, desaparecidos dos passeios e dos vãos da avenida, sabe-se lá por que motivos, mais provavelmente porque não aguentaram mais um mau inverno ou mais este inferno.
 
Estejam onde estiverem ou em lado nenhum, estejam em paz, Sr. Marquês e Sr. Profeta, que a serenidade do esquecimento tenha substituído a arrogância dum e a angústia do outro (porque, finalmente, estas já não vos façam  sentido e, muito menos, falta).
 
Este é o meu voto e o meu tributo.
 
 
 
 O DESCANSO DO SR. MARQUÊS
 
 
 
 
 

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