domingo, 24 de maio de 2020

83º DIA DAQUILO: AINDA O TEMPO ENTRE PARÊNTESIS


Então, ele disse-me: "Já falaste do tempo entre parêntesis." 

E eu desatei a falar, mais ou menos como segue.

Bem sei, não foi há tanto tempo assim. Mas, daí para cá, mergulhei mais a fundo no conceito e extraí algumas conclusões. 

Estás a ver aquele mar, hoje verde, amanhã cinzento, depois azul, em todos os cambiantes dessas e, possivelmente, doutras cores, que vem e vai sem parança, num contínuo de eternidade, e, todavia, nunca se repete? Certamente que sim, quem não?

Esse mar está ali, à distância duma estrada ou autoestrada, não muitos quilómetros. O meu carro já lhe sabe o caminho, leva-me até lá uma e outra vez, quando adivinha que me apetece repousar o olhar naquele imenso vai-vem. Talvez suceda o mesmo contigo. 

As visitas ao mar situam-se no exterior do tal tempo entre parêntesis, aquele de que falei. Simplesmente porque são dado adquirido, ao menos enquanto o meu carro me adivinhar os desejos e estiver na disposição de os satisfazer (já agora, sabes que, para mim, certos objectos funcionam como se pessoas? Mas isto não passa de um pequeno parêntesis, estranho ao tema do tempo entre parêntesis).

Perguntas-me, então, o que concluí. Fundamentalmente, que gosto de tempos entre parêntesis, por muito duros que possam apresentar-se, incluindo aqueles em que deixo de poder ir ver o mar (ou dar abraços ou outras coisas que amo e me fazem bem). Aliás, melhor dizendo, nem será bem gostar, é, antes, dar-me bem com.

Dou-me bem com tempos entre parêntesis, aqueles que, de quando em quando, inexoravelmente, cortam o parêntesis maior que é a vida (cuja natureza é um tanto diferente, pois deste ignora-se tudo, principalmente, a natureza e o objectivo das curvas inicial e final e, apesar disso, indica a sensatez que não conduz a lado nenhum e sabe-se lá de onde vem...).

Esses tempos entre parêntesis podem ser criados por nós (ao menos em termos ilusórios) ou ser-nos impostos, e tanto podem ser bons como maus. Dos primeiros – por exemplo, o tempo de concretização duma viagem desejada –, tendencialmente, desfruta-se; quanto aos segundos – por exemplo, um luto, uma doença, um estado de confinamento (olá, Covid-19, já cá faltavas!) –, passa-se por diversas fases indesejadas, e, tendencialmente, adaptamo-nos (isto se quisermos deixá-los para trás e, sobretudo, se conseguirmos).

Num caso ou no outro, nem o desfrute nem as distintas fases/adaptação são, necessariamente, plenas ou perfeitas, mas isso decorre da óbvia natureza da vida. 

Todavia, possuem algo em comum, criam a ilusão de que, fechado o parêntesis, nada igualará o dantes, será alcançado um patamar novo, diferente, melhor. Ou seja, representam uma interrupção no vai-vem monótono da vida, com a promessa de se sair vencedor (nem que seja, apenas, pela mera ilusão de recuperar o seu curso, com um enriquecimento de permeio).

E é por isso que me dou bem com os tempos entre parêntesis, porque (já) consigo desfrutar dos bons, ganhei um satisfatório grau de resiliência que me permite adaptar bastante bem aos maus, e, pelo caminho, entrego-me à ilusão de que, no fim, regressarei ao ramerrame do parêntesis maior, numa posição mais sólida.

Perguntas-me: "O que queres dizer com ilusão?"

Ora, não queiras aprofundar, pretendo apenas dizer o óbvio: ilusão é ilusão, só acredita quem quer, quem pode (esses sortudos!) ou – e não menos importante – quem tem a inteligência suficiente para fingir que acredita (e fingir que tal fingimento resulta).  Não me digas que o Natal seria o mesmo se não houvesse o Pai Natal e as renas e o Menino Jesus, numas palhinhas deitado!

"Não há", dizes-me? Ora pensa lá bem! (Desatamos ambos a rir.)

O lugar onde se regressa, contido entre os dois parêntesis maiores, é a vida, no seu cansativo vai-vem (caso o parêntesis final não se tenha fechado, ceifando-nos para fora). Depois, é só esperar pelo próximo tempo entre parêntesis. 

E, entretanto, ir ver o mar. Por exemplo. 











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