sexta-feira, 17 de julho de 2020

AINDA SEM TÍTULO


Cheguei um pouco atrasada. Ela já estava à espera, sentada num banco do parque. Mesmo antes de dizer «Olá!», notei qualquer coisa estranha, sem perceber exactamente o quê, talvez uma sombra de inquietação ou um farrapo de desespero. Não aprofundei, foi sempre esse o meu mal, aliás, causador de males bem maiores, esse de captar sinais, mas abster-me de os interpretar. Quantos desgostos e – atrevo-me a dizer! – tragédias poderiam ter sido evitados, caso me tivesse aplicado mais! Mas agora é demasiado tarde para lamentações, já nada pode mudar o curso dos acontecimentos.

Tinha as pernas cruzadas, a de cima oscilando num movimento rítmico e nervoso, elevando-se e baixando-se, do joelho até ao dedo grande do pé, esticado, como se essa parte do seu corpo fosse dotada de vida própria… e maníaca. Numa espécie de contenção, que destoava do movimento da perna, espetava as costas, muito direitas, contra a madeira do banco, pintada de vermelho sangue, já a descascar e a escurecer, por efeito da passagem de muitas estações sem manutenção. Numa das mãos, segurava uma sanduíche de queijo quase intacta – nem sei porque reparei no pormenor do recheio –, que ora levava à boca, para uma dentada fugaz e desinteressada, ora pousava na embalagem de cartão, largada a seu lado. No intervalo, passava a mão de dedos finos e nervosos pelos longos cabelos dourados, como se procurasse submeter o que a brisa de início de primavera insistia em desmanchar. Os olhos, castanhos claros, pareciam empenhados em não me encarar ou mesmo em fugir de mim.

Desculpei-me pelo atraso e perguntei, «Afinal o que se passa, Joana, aconteceu alguma coisa? Pareces tão ansiosa…»

Em vez de responder – e como a dar-me razão –, agitou-se no banco, virando-se para o outro lado, oposto ao ocupado por mim, talvez à procura da sanduíche. No acto, impaciente e brusco, entornou uma garrafa de sumo – Compal Vital Frutos Vermelhos, reparei – de encontro às calças, onde alastrou, de imediato, uma enorme mancha vermelha arroxeada. Elevou a voz, não para me reponder, mas para protestar, «Merda!»

«Calma!», disse eu, enquanto lhe estendia dois ou três lenços de papel, que ela me arrancou da mão e aplicou furiosamente sobre as calças, enquanto repetia, agora mais baixo e com os olhos brilhantes de lágrimas – ou assim me pareceu –, «Merda, merda!»

Pela minha parte, já não sabia que fazer. Conhecia-a suficientemente bem para não estranhar um ou outro assomo de mau feitio ou impaciência, mas aquilo era um exagero, nunca a vira tão transtornada. Porém, também é verdade que, ultimamente, haviam acontecido coisas estranhas, inexplicáveis (que talvez o não fossem, caso me tivesse dado aos trabalho de lhes interpretar os sinais). 

Foi então que, como se tivesse acabado de ganhar coragem, espantou os olhos na minha direcção e entreabriu os lábios carnudos, de onde, num fio de voz assustado, saíram estas palavras, «Sabes, Pequenina – era esta a minha longínqua alcunha, sendo o meu nome, Mafalda –, há assuntos que gostaria de falar contigo, mas não pos…»

 A frase ficou assim, a meio, interrompida pelo som estridente de um telemóvel, que a fez saltar do banco e precipitar a mão para dentro do bolso do casaco. Deteve-se um momento a fixar o écran e depois atendeu, com voz estrangulada. Afastou-se, fazendo-me um breve sinal, que não percebi bem, mas assumi como aviso para esperar (embora, mais tarde, tenha pensado se o seu significado não fora, justamente, o oposto).

Decorrido nem meio minuto, regressou, apanhou a mala pousada no banco, olhou-me com os olhos a fugir e afastou-se em passo rápido, não sem antes dizer, num fio de voz, quase já de costas voltadas, «Desculpa Pequenina, não queria que as coisas fossem assim, desculpa.»

Já se perdia, reduzida no tamanho, para lá da espessura das árvores, de cuja folhagem sobressaíam algumas flores, quando consegui fechar a boca espantada. Não fui a tempo de lhe perguntar nada. Aliás, nunca mais haveria de lhe perguntar fosse o que fosse, pois foi a última vez que a vi, embora, na altura, não o tivesse percebido ou sequer suspeitado e, mais tarde, se tenha tornado tarde demais. 

Ainda perplexa, levantei-me para ir embora. Foi então que vislumbrei algo, ou melhor, alguém que parecia… não, não podia ser! Apressei o passo. Não que me tivesse valido de muito.






terça-feira, 14 de julho de 2020

JÁ NEM SEI QUE DIA DAQUILO: DESPEDIDA!


Já nem sei em que dia (daquilo) vamos, mas, como dizia o outro, é só fazer as contas.

No princípio (Dezembro de 2019) era longe (Wuhan, China), tão longe que nem chegaria cá – vaticinou a autoridade.

Depois, começou a aproximar-se (Itália, Espanha...).

Impôs-se entre nós no início de Março, com o primeiro infectado, os que se lhe seguiram e o alvoroço associado.

Entretanto, espalhou-se pelo mundo, ao ponto de merecer honras de pandemia.

Que me lembre, foi a primeira pandemia da minha vida, quero dizer, assim tão perto, pronta a morder-me a pele. Agravada pela novidade do vírus causador – Covid-19 –, sobre o qual, num mundo em que, não raro é elevada à categoria de deusa, a Ciência pouco sabia, como, de resto, pouco continua a saber.

Desencadearam-se teorias da conspiração, generalizou-se a ideia de impotência, com o espanto e medo associados, reflectiu-se sobre a globalização e outros chavões, constatou-se que a natureza estava a melhorar – esquecendo que o vírus é parte dela! – e houve, até, quem acreditasse que a humanidade sairia renovada da experiência.

Cantaram-se loas aos profissionais de saúde, desancaram-se os políticos quando hesitaram e louvaram-se quando decidiram e calhou os resultados serem bons, mudaram-se as vidas, à sombra do confinamento e, sobretudo, do medo (e este foi tanto que os stocks de papel higiénico se esgotaram!).

Falou-se até à exaustão em curvas, picos e planaltos, idosos e lares de terceira idade, ventiladores e cuidados intensivos, etiqueta respiratória, distanciamento social e (após negação inicial) máscaras, testar, testar, testar e, finalmente, milagre.

Entretanto, caiu-se na (outra) real e desatou a falar-se em condições sociais, emprego, exportações, turismo, em suma, economia, e atalhou-se com o célebre lay-off e outros remendos possíveis. 

Pelo caminho, montou-se um circo de variedades, com pontos altos no anúncio da recandidatura do Presidente da República e na atribuição do prémio UEFA aos profissionais de saúde.

Constatado o milagre, as pessoas foram autorizadas a sair, embora com razoáveis cautelas e pertinentes advertências. 

Estava aberto o caminho para o novo normal!

Para mim, o novo normal significou desconfinar com as necessárias cautelas. 

Em geral, fui levada a constatar que para a maioria das pessoas (independentemente das razões e das condições sócio-económicas), o novo normal é o velho normal. Poderia dar exemplos, mas tornava-se exaustivo, para além de desnecessário (cada qual terá a sua própria experiência).

Entretanto, a situação  – número de infectados e de mortos, estado da economia e finanças, etc. – é a que se sabe. O milagre reverteu!

E eu cansei! Não de adoptar as medidas de cautela recomendadas – ou por outra, cansei, mas persevero, segundo o princípio de que o que tem de ser tem muita força –, mas cansei de dar para este peditório (do Covid-19). Falha-me a paciência e o interesse, já basta o que basta!

Limito-me a acrescentar que extraí, aliás, reiterei três conclusões:

) Não há milagres grátis;

) O Covid-19 é como a dívida pública: não se abate, gere-se;

) O que é preciso é calma.

Assim sendo – e a menos que, num ataque de volubilidade, decida em contrário – aqui encerro esta minha espécie-de-diário.

Daí o título deste post.

P.S.: Reparei, com muito agrado, que o número de seguidores aumentou para 28! Muito obrigada!







sábado, 4 de julho de 2020

O FIM DA PRIMAVERA


Esta Primavera dói, magoa, arrasa. O meu coração já não tem força para esta Primavera, que me dói, magoa, arrasa.
O meu coração só teve angústias de Primavera e agora, justamente agora, estava disposto a dar saltos para além do pico do alto do vulcão.
Mas o quê, que sucede? Nada. Pior, que ao nada estava ele habituado!
Eis que surgiu um imprevisto de promessa, de esperança, e ele, meu coração, deixou-se levar, pendurou-se numas asas de mentira, como há muito não se tinha deixado pendurar.
 As asas romperam ao primeiro esboço de voo e ele tombou. Desde então, não tem parado de rolar, por aí a baixo, esfrangalhado, embrulhado nas brumas duma angústia muito antiga, misturadas com o veneno da desilusão tardia, demasiado tardia para se poder considerar mero acidente.
Digamos que nem chegou a ser hipótese, mas sucedeu como se a última hipótese. Qual aposta perdida!
 O meu coração encalhou na garganta e ficou preso num grito tão surdo, tão surdo, que se faz ouvir por todo o Japão e arredores. Deteve-se lá nas encostas esfumadas do belo Monte Fugi.
Raio de sina a do meu coração! Se eu pudesse, se estivesse nas minhas mãos, acabava de vez com a Primavera. Mas apenas para mim.
(Texto de Abril de 2014)






sábado, 13 de junho de 2020

103º DIA DAQUILO: O TESTE!


Mais de três meses da coisa! E o desconhecimento de quanto mais tempo teremos de viver com ela entre nós (ou, mesmo, connosco).
E tanta coisa (ou tão pouca) pelo caminho!

Vou, aqui, relembrar o episódio do teste: estávamos no início de Abril e, certo dia, acordei sem forças, prostrada, com uma ligeira dor de garganta, um pouco de tosse seca e o nariz entupido. Enfim, a desagradável sensação de infecção respiratória das vias superiores (como o médico costuma diagnosticar), a que, aliás, sou muito atreita e que, em circunstâncias normais, teria tratado do modo habitual, ou seja, com Brufene 600.

Todavia, não estávamos em circunstâncias normais, a coisa, de seu nome Covid-19, instalara-se entre nós há pouco mais de um mês e corriam ainda as mais variadas versões a seu respeito – coisa que, aliás, ainda hoje sucede, só que já não se liga nenhuma, porque, se é para ficar na mesma ou baralhado, é preferível não ligar. No que respeita à situação concreta, corria o boato (ou não boato, vá-se lá saber!) de que o dito medicamento não deveria ser tomado em caso de se padecer de Covid. À cautela, abstive-me de o tomar, ficando-me pelo paracetamol.

Talvez por isso, a mazela prolongou-se por mais tempo do que seria normal e, aí pelo terceiro ou quarto dia, decidi recorrer ao meu médico. Como não estivesse a dar consultas, entendi por bem estrear-me na Linha SNS24. Não estava, obviamente, convencida de ter contraído o vírus, mas, em bom rigor, também não o podia excluir. 

Logo à primeira chamada e aos toques inicais, fui atendida. Após um interrogatório que se me afigurou mais de natureza geral do que dirigido à concreta sintomatologia descrita, a senhora enfermeira corroborou a minha decisão de não tomar o Brufene e anunciou-me que tinha de fazer o teste. Ainda aleguei que talvez não, afinal não tinha febre, etc. e tal, mas ela foi peremptória.

Passadas umas horas, recebi, via comunicação electrónica, a pertinente requisição e a página da DGS com a lista dos locais onde poderia fazer o teste.

Não pretendendo dirigir-me a um Laboratório – com receio de aí apanhar a coisa que estava convencida de não ter –, ainda admiti optar pela realização no domicílio, mas rapidamente afastei tal hipótese, quando me ocorreu que poderiam aparecer-me à porta armados em heróis espaciais e criar na vizinhança um alarme desnecessário (do qual eu não deixaria de ser a vítima).

Decidi-me pela solução intermédia, Drive Through (realização do teste sem necessidade de sair do carro), uma fórmula cómoda e segura, tanto mais que precedida da adesão a uma app, com introdução, na mesma, de todos os elementos relevantes.

Lá fui eu na boa, convencida de que aquilo não custava nada, até porque nunca sofri dor ou desconforto com o uso de cotonetes, embora, até então, só as tenha usado nos ouvidos, e também porque, nas séries policiais, nunca ouvi ninguém queixar-se (de dor ou desconforto) pela recolha de ADN com o dito tipo de utensílio. A realidade mostrou-se, todavia, diferente. Quando me disseram para respirar fundo, nunca imaginei que fosse para conter a dor... Sem mais delongas, aquele pau comprido enfiado pelas narinas acima... ou abaixo, quando toca lá atrás, em cima ou em baixo – não sei onde, mas, a mim, pareceu-me nos miolos – doeu-me "pra" caraças, obrigando-me a mexer, involuntariamente, a cabeça, o que motivou a necessidade de nova ferroada. Às tantas, soltou-se-me uma lágrima, não de choro – que não sou dada a dramas –, mas reactiva à intrusão do palito agressor. 

Já à saída, como o nariz me doesse, perguntei a um enfermeiro se aquilo era normal. Respondeu-me que a dor passaria em breve e, ao meu desabafo de que não imaginara tratar-se de um processo tão doloroso, respondeu que sim, que também lhe tinha doido muito e até tinha chorado imenso. Mariquinhas, pensei.

Regressei a casa a imaginar que, porventura, não haveria melhor forma de induzir as pessoas a respeitarem as normas da DGS do que consciencializá-las do quanto custa efectuar o teste. Ainda admiti fazer chegar a sugestão à Dr.ª Graça Freitas, mas tive receio de que, às segundas, quartas e sextas, ela aderisse e às terças, quintas e sábados anunciasse que o teste, afinal, não custa nada, o que poderia baralhar as pessoas e ser contraproducente.

Durante o período em que aguardei o resultado, desejei secretamente que fosse positivo, tanto mais que, entretanto, os sintomas foram-se esbatendo e seria maravilhoso ter vencido o Covid-19 com tão pouco custo (excepto as dores do teste, mas, convenhamos, a sua duração é mínima). Todavia, para destruição das minhas fantasias, o resultado foi negativo!

Até o obter, fui diariamente contactada, por telefone, por uma médica do SNS (mas só a partir aí do quarto dia da minha chamada para o SNS24, porque, alegadamente, antes não houve disponibilidade).

Moral da história: se voltar a ter síndrome de infecção respiratória não ligo para a linha de saúde 24 – a não ser que me falte o ar e, neste caso, se conseguir falar! Não porque o SNS tenha funcionado mal, antes pelo contrário – excepto no tocante ao atraso no contacto da médica –, mas porque não quero submeter-me a novo teste (Uff!).

Agora, já em maré de desconfinamento, ainda queria falar dos meus progressos no regresso à vida, mas como este post já vai longo, deixo para o próximo. 









domingo, 24 de maio de 2020

83º DIA DAQUILO: AINDA O TEMPO ENTRE PARÊNTESIS


Então, ele disse-me: "Já falaste do tempo entre parêntesis." 

E eu desatei a falar, mais ou menos como segue.

Bem sei, não foi há tanto tempo assim. Mas, daí para cá, mergulhei mais a fundo no conceito e extraí algumas conclusões. 

Estás a ver aquele mar, hoje verde, amanhã cinzento, depois azul, em todos os cambiantes dessas e, possivelmente, doutras cores, que vem e vai sem parança, num contínuo de eternidade, e, todavia, nunca se repete? Certamente que sim, quem não?

Esse mar está ali, à distância duma estrada ou autoestrada, não muitos quilómetros. O meu carro já lhe sabe o caminho, leva-me até lá uma e outra vez, quando adivinha que me apetece repousar o olhar naquele imenso vai-vem. Talvez suceda o mesmo contigo. 

As visitas ao mar situam-se no exterior do tal tempo entre parêntesis, aquele de que falei. Simplesmente porque são dado adquirido, ao menos enquanto o meu carro me adivinhar os desejos e estiver na disposição de os satisfazer (já agora, sabes que, para mim, certos objectos funcionam como se pessoas? Mas isto não passa de um pequeno parêntesis, estranho ao tema do tempo entre parêntesis).

Perguntas-me, então, o que concluí. Fundamentalmente, que gosto de tempos entre parêntesis, por muito duros que possam apresentar-se, incluindo aqueles em que deixo de poder ir ver o mar (ou dar abraços ou outras coisas que amo e me fazem bem). Aliás, melhor dizendo, nem será bem gostar, é, antes, dar-me bem com.

Dou-me bem com tempos entre parêntesis, aqueles que, de quando em quando, inexoravelmente, cortam o parêntesis maior que é a vida (cuja natureza é um tanto diferente, pois deste ignora-se tudo, principalmente, a natureza e o objectivo das curvas inicial e final e, apesar disso, indica a sensatez que não conduz a lado nenhum e sabe-se lá de onde vem...).

Esses tempos entre parêntesis podem ser criados por nós (ao menos em termos ilusórios) ou ser-nos impostos, e tanto podem ser bons como maus. Dos primeiros – por exemplo, o tempo de concretização duma viagem desejada –, tendencialmente, desfruta-se; quanto aos segundos – por exemplo, um luto, uma doença, um estado de confinamento (olá, Covid-19, já cá faltavas!) –, passa-se por diversas fases indesejadas, e, tendencialmente, adaptamo-nos (isto se quisermos deixá-los para trás e, sobretudo, se conseguirmos).

Num caso ou no outro, nem o desfrute nem as distintas fases/adaptação são, necessariamente, plenas ou perfeitas, mas isso decorre da óbvia natureza da vida. 

Todavia, possuem algo em comum, criam a ilusão de que, fechado o parêntesis, nada igualará o dantes, será alcançado um patamar novo, diferente, melhor. Ou seja, representam uma interrupção no vai-vem monótono da vida, com a promessa de se sair vencedor (nem que seja, apenas, pela mera ilusão de recuperar o seu curso, com um enriquecimento de permeio).

E é por isso que me dou bem com os tempos entre parêntesis, porque (já) consigo desfrutar dos bons, ganhei um satisfatório grau de resiliência que me permite adaptar bastante bem aos maus, e, pelo caminho, entrego-me à ilusão de que, no fim, regressarei ao ramerrame do parêntesis maior, numa posição mais sólida.

Perguntas-me: "O que queres dizer com ilusão?"

Ora, não queiras aprofundar, pretendo apenas dizer o óbvio: ilusão é ilusão, só acredita quem quer, quem pode (esses sortudos!) ou – e não menos importante – quem tem a inteligência suficiente para fingir que acredita (e fingir que tal fingimento resulta).  Não me digas que o Natal seria o mesmo se não houvesse o Pai Natal e as renas e o Menino Jesus, numas palhinhas deitado!

"Não há", dizes-me? Ora pensa lá bem! (Desatamos ambos a rir.)

O lugar onde se regressa, contido entre os dois parêntesis maiores, é a vida, no seu cansativo vai-vem (caso o parêntesis final não se tenha fechado, ceifando-nos para fora). Depois, é só esperar pelo próximo tempo entre parêntesis. 

E, entretanto, ir ver o mar. Por exemplo. 











quinta-feira, 14 de maio de 2020

A NOSSA CASA JÁ NÃO É A NOSSA CASA


A escuridão abateu-se sobre esta parte do mundo. Os candeeiros públicos desmaiam num amarelo pífio.

Ainda assim, consigo divisar os contornos da casa. Num dos lados brilham dois rectângulos. Já não são quadriculados. A caixilharia de madeira vermelha cedeu lugar a um alumínio castanho, não que agora o possa ver, mas sei, doutras observações, espionagens diversas.

A luz rectangular espreita da saleta, quer dizer, espreitaria da saleta, se.

Vêm-me à ideia lascas finas da madeira, bege amarelada, da parte de dentro. Muitos sóis por ali passaram. No fim, já ameaçavam desmoronar-se em farripas gastas, ressequidas. Como certas vidas, depois de vividas ou não vividas. Sei lá!

A nossa casa já não é a nossa casa.

Era a casa onde morávamos e, agora, é ela que mora em nós.

(A partir de um texto escrito, em 02/12/2016, no Hotel Miracorgo, Vila Real)









quarta-feira, 13 de maio de 2020

73º DIA DAQUILO: "O FUMO"


Hoje, pela primeira vez e a título excepcional, publico aqui um texto cuja autoria não me pertence. 

Trata-se de um sentido poema, de profundo(s) significado(s) e oportunidade (nesta época de pandemia e reclusão forçada), intitulado "O Fumo", de que é autor o João, de 13 anos, rapazinho que muito amo e que congrega diversas qualidades e talentos – dos quais este, da escrita, ainda me era desconhecido, embora não insuspeitado, não revelasse ele verdadeira alma de artista.

Segundo me disse, o poema surgiu-lhe, quando, através da janela,  divisou fumo a evolar-se da chaminé dum lar de idosos, de onde saíra uma ambulância, transportando um corpo (sendo que se registam ali casos de Covid-19).

 O Fumo

 Ó Fumo tão belo
 que vais ao sabor do vento
 vem aqui e leva-me a
 ver outro horizonte

 Ó Fumo tão belo
 que não segues regras
 vem aqui e leva-me até
 Bruxelas

 Ó Fumo tão belo
 que vens de tão nobre
 pai, o fogo que te cria
 que para mim é uma
 alegria

 Ó Fumo tão belo que paraste
 de viajar, alguém apagou tua
 chama e ficaste sozinho 
 a chorar