Já se fez tarde, muito tarde, sem que tivesse dado por isso, num repente, isto é, num súbito, apercebi-me de que era muito, muito tarde, como quando olhas para o espelho e reparas naquela expressão ou vinco que, ainda ontem, não estavam do lado de cá, ou então, numa qualquer ausência, agora presente.
Já se fez tarde, muito tarde, sem que tivesses dado por isso, viste como a revelação se me tornava evidente, não que a percepção partisse de ti, andavas distraído, mas, num repente, isto é, num súbito, apercebeste-te do reflexo que eu projectava, como se eu fosse um espelho e tu, eu.
Ficámos sintonizados, mas apenas porque se fez tarde, muito tarde, e ocorreu o nano segundo da revelação, os espelhos, cumprida a sua tarefa, estilhaçaram-se, agudos de vidro frio rompendo paredes à volta.
Deixei que se fizesse tarde, muito tarde, andavas naquela ideia de que ainda era tempo, tempo vivo, apetecido, negaste a importância dos reflexos que não mentem, porque são superfícies lisas, cristalinas, e, o mais importante, não vivem para outro fim nem se alimentam doutra matéria que não a mais pura neutralidade.
Não que me tivesse deixado aconchegar na ilusão, mas distraí-me um pouco, até ao limite daquele nano segundo, até ao limite de me ter visto reflectida em ti, não, até ao momento de ter percebido que o meu reflexo se te fez visível, finalmente.
Foi, então, que me interroguei sobre a razão de não podermos olhar-nos com os nossos próprios olhos, sim, olhos meus em olhos meus, bem no fundo, sem necessidade da intermediação de olhos outros, olhos vítreos e indiferentes de espelhos, olhos luminosos e talvez cúmplices, de terceiros, os teus olhos ou os olhos dalgum outro.
Mas agora não importam interrogações, fez-se tarde, muito tarde, tão tarde.
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