Assim como ele, também ela tinha os olhos castanhos, um castanho banal, mas um formato original, desenhado em amêndoa, já o cabelo, igualmente castanho, brilhava em reflexos naturais, entre o louro escuro e o acobreado, a pele era branca e esplendorosa, cetim cor de marfim, o corpo bem delineado, suaves curvas certas nos lugares devidos, sem esquecer os ângulos, bem definidos, ossos exactos, perfeitamente colocados. Ah! e vestia bem e maquilhava-se ao de leve, um pouco de sombra, mero sublinhado, um pouco de blush cor de pêssego, desmaiado, o bâton castanho-chocolate da Crhistian Dior - tinha um número, seria o 67? -, realçando os lábios carnudos e sensuais, como os dele - puro fogo, quando se cruzavam! -, e, de perfume, embrulhava-se, discretamente, na eau de parfum Madame Rochas. Era linda, suave e delicada, como todos não se cansavam de declarar e demonstrar. Todos menos ele, o Artur Adriano, que fazia gala de se mostrar excepção, como se reconhecer-lhe a beleza e a elegância fosse matéria de inadmissível cedência, de impossível confissão, sabe-se lá de que atravessamento de personalidade. Até da fotografia de bebé que ela transportava na carteira ousava desdenhar. Só que os gestos desmentiam as palavras e ela preferia acreditar nos gestos, pois os gestos eram livres e as palavras não pareciam sê-lo. Afinal, ela não o tinha preso ou condicionado, sob ameaça ou promessa ou qualquer outra forma de subjugação, ela limitava-se a amá-lo, naturalmente, assim, como julgava ser da natureza o amor, como crescera na sua espera, sem preocupação ou pressa, ansiedade ou sequer pensamento, apenas coisa natural, destinada a acontecer e pronto. Mas cedo percebeu que as coisas não eram bem assim, como ficou bem à vista no episódio da primeira dança com Artur Adriano, já se falou nisso. E agiu como se nada, também já ficou dito. Teria sido por um talvez, uma interrogação, uma hipótese de diverso? Como poderá saber-se? E de que adianta, se foi assim que ela agiu?!
De resto, continuou a agir como se nada, ao menos durante algum tempo. Foi assim que, certo dia, animada pelo entusiasmo da dádiva e pela alegria da surpresa, comprou morangos, lavou-os escrupulosamente, retirou-lhes o verde da extremidade, adicionou-lhes açúcar, fechou-os numa caixa com tampa, embrulhou tudo num afectuoso sorriso e entregou-lhe, toma, preparei estes morangos para ti. Isto, no carro dele, o MGB azul, que a fora buscar. Artur Adriano sorriu um sorriso meio atrapalhado e atirou, melífluo, a minha mãe havia de me dizer para não comer, que podem estar enfeitiçados - ou seria embruxados? Crê-se , todavia, que chegou a provar os morangos, sabe-se lá preso em que medos, incutidos por uma mãe que talvez não fosse mulher ou talvez fosse.
Ela não fez o que devia, ou seja, não despejou a caixa dos morangos sobre a cabeça dele, molho vermelho a escorrer sobre os estofos, havia de ter sido lindo de assistir, o desespero pela mácula do impecável carro que, esse sim, ele tanto e tão declaradamente amava, não saiu do carro nem bateu estrondosamente com a porta, fazendo-a saltar das dobradiças ou lá o que é, não lhe chamou nenhum nome feio, no mínimo, cabrão, apenas não voltou a preparar morangos para o Artur Adriano, quem diz morangos diz qualquer outra doçura de boca e aconchego de coração. Quer dizer, por estranho que pareça, fez, justamente, o contrário, rendeu-se, entrou no jogo dele, o jogo da omissão das palavras tão necessárias quanto apetecidas, da negação da verbalização dos afectos, da rendição à crueza dos actos, por mais significativos, apaixonados e empolgantes que pudessem ser ou parecer. Foi assim que a salvação do seu amor ditou - elevadíssimo preço - reduzir o amor a simples mímica, pobre amostra, destituída de rosto ou expressão. Enfim, condenou-se a não amar, em nome do amor. Poderá haver contra-senso maior e mais disparatado? E assim ficou sem nome, porque perdeu a identidade. Por isso até aqui nunca apareceu nomeada, contrariamente a ele, o eterno Artur Adriano. O patético Artur Adriano.
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