domingo, 6 de dezembro de 2020
MENINA PARADA NAS ESCADAS
segunda-feira, 23 de novembro de 2020
PÓ DAS ESTRELAS
quarta-feira, 11 de novembro de 2020
O MENINO QUE PERDEU AS BOTAS
Nota: este história surgiu-me de um par de botas infantis, com as meias dentro, com que me deparei sobre o paredão da Praia Grande, momento que registei na fotografia supra.
quarta-feira, 28 de outubro de 2020
EM MEMÓRIA DE UM CIDADÃO DESCONHECIDO
Nota prévia: este post é inspirado num caso verídico. Infelizmente...
O pai, octogenário, telefona, a perguntar se sabe notícias do irmão. A sua voz, frágil e agitada, revela a preocupação e ansiedade de quem, há vários dias, exactamente três, tenta contactar o filho, sem êxito.
Responde-lhe que não e, logo de seguida, liga para o telemóvel do irmão. Também sem êxito.
Já tomada de uma inquietação premonitória, dirige-se, sem demora, a casa dele. Ninguém acode ao toque da campainha. Por sorte – e há sortes que mais parecem azares! –, um morador acaba de estacionar e dirige-se para a entrada do prédio. A medo, mas não sabendo que mais fazer, ela dirige-se-lhe e pergunta-lhe se conhece o António, seu irmão, e se o tem visto ou sabe o que...
Não, não consegue acabar a frase, é interrompida pela resposta brutal (porque lhe soa brutal) do interpelado: "O António!? O António morreu no sábado passado, mesmo aqui à porta. Caiu para o lado e já não se levantou. O INEM levou o corpo, mas já nada havia a fazer!"
Ela, tomada por um espanto situado para além da dúvida e do terror, fraqueja sobre os joelhos, ameaçando desmoronar-se, os olhos muito abertos, secos, ainda, os lábios trementes, incapazes de formular o pedido, diga-me que é mentira, que não está a falar do António, o meu irmão António...
Só então o mensageiro se apercebe de não estar perante uma simples vizinha ou conhecida, de que os une – unia –, a ela e ao António, uma relação de fraternidade que só podia ser profunda; consciente da sua falta de tacto, recrimina-se, em silêncio, para dentro de si, um silêncio que interrompe para lhe perguntar, desajeitado, as coisas que se impõem, enquanto lhe estende a mão, num amparo que já vem tarde e, aliás, de nada serve, porque de nada poderia servir.
Reequilibrada nas pernas ainda bambas, recolhidas as forças restantes e as parcas informações complementares, ela afasta-se aos tombos, não literalmente, que as tempestades da cabeça e do coração nem sempre têm expressão corporal, entra no carro, arranca incerta, sem saber bem o que fazer, por onde começar, enquanto pela cabeça lhe passa uma variedade de imagens e pelo coração uma cavalgada de sentimentos: como se num relâmpago ardente, vê o irmão, vê-se a ela e ao irmão, crianças, adolescentes, não necessariamente por esta ordem, os pais, ai os pais, como poderá dar uma notícia assim aos pais?, porque tem uma pessoa de viver para além dos oitenta anos para assistir a uma coisa assim, a morte de um filho!?, mas estará morto, será mesmo verdade?, não terá o vizinho trocado as identidades?, vê-lo, precisa de o ver, obter uma certeza, melhor, um desmentido, não pode ser, vai-se a ver daqui a nada passa o susto, é só reunir a coragem para o ver, mas onde?, na morgue, numa mesa fria, de metal cortante de tão frio, não, não pode ser, não pode ser ele, o António não, não, não.
E dá consigo parada num semáforo, com as mãos cravadas no volante, os braços a tremer, a boca aberta num grito que depressa é choro e baba e ranho e saca do telemóvel, marca o número dele, do António, sabe que ele vai atender, um, dois, três toques, mais, até que surge a gravação a remeter para a caixa de mensagens. Salta no assento, a buzinaria à sua volta é ensurdecedora, o sinal está outra vez vermelho e os condutores de trás, furiosos, proferem impropérios, chamam-lhe nomes, e ela avança e quase bate no carro que se lhe atravessa à frente, confiante na prioridade ditada pelo verde do seu sinal. Trava bruscamente. As buzinadelas recomeçam pouco depois, caiu o verde, já pode avançar. Para mais à frente, apenas o tempo necessário para se recompor. Pensa no pior e no melhor e o melhor é que tudo pode não passar de um erro, de uma grosseira confusão de identidades, afinal, pensa, ficou tão aturdida que não atendeu bem ao que o vizinho do António disse, não se certificou de que ele soubesse bem quem era o António, mas, ao mesmo tempo, não acredita nesta crença mágica e sabe que só há uma maneira de confirmar.
Já no departamento da polícia, pede para falar com o chefe. Indicam-lhe que espere. Aproveita para tentar por a cabeça em ordem, e o telemóvel toca, atende, não atende?, não atende, é a mãe, desta vez é a mãe, octogenária, não tem condições para lhe dizer, não enquanto não obtiver a prova, a prova de que não se trata do António e, mesmo depois, como posso dar-lhes a notícia, interroga-se, num novelo de contradição e angústia, o estômago a chegar à boca.
Decorre meia hora. A angústia, a ansiedade, o desnorte, o esforço de compostura e muito mais elevam-se numa multiplicação alucinante, muito para além das regras da matemática.
O chefe acaba por chegar e, pela sua boca, a informação, inesperada, surrealista, assustadora: "O corpo está na morgue, onde aguarda cremação"! Seguem-se as informações complementares, por exemplo, que sim, que lhe encontraram a carteira e o telemóvel, mas não, não atenderam as inúmeras chamadas de familiares e amigos que, entre aquele fatídico dia e este, quatro dias depois, soaram desesperadamente à sua procura. E não, não é adiantada qualquer explicação lógica para o facto de a autoridade não ter diligenciado contactar qualquer familiar ou amigo e ter destinado o que restou daquele ser humano à cremação!
(Digo eu que não é adiantada, porque não pode haver, simplesmente não pode haver explicação lógica!)
Inexiste grau de estupefacção e de revolta susceptível de quantificar a estupefacção e a revolta que se apoderam dela! Então é assim, encontra-se um morto na via pública, tombado à porta de casa, um cidadão na posse dos seus direitos e do seu telemóvel e da sua carteira e das suas impressões digitais e do seu número de contribuinte e de cidadão, e não se procura a família ou os amigos ou, no limite, algum conhecido!? Espera-se que apareçam por milagre ou, quem sabe?, que não apareçam, e, decorridos nem quatro dias, decide-se-lhe o futuro dos restos, para mais, um futuro de não deixar rasto!?
O espanto e revolta só podem elevar-se ao patamar da dor e do sentimento da absoluta necessidade de exigir responsabilização!
Afinal, por um sinistro jogo de absurdo, esteve à beira de não conseguir resgatar o corpo, ou seja, de não poder comprovar que – bem contra a intensidade do desejo contido na sua esperança mágica – fora mesmo o António, o seu querido António, que num soalheiro dia de Outono, em plena pandemia de Covid-19, mas por uma qualquer razão estranha a esta, tinha partido deste mundo sem poder despedir-se. E isto é dizer que esteve a um mínimo passo de lhe ter sido negado despedir-se dele e dar à sua matéria remanescente um destino conforme às suas crenças. Ela, seus pais octogenários, demais familiares e amigos. Não é coisa pouca! E assusta!
segunda-feira, 19 de outubro de 2020
ANTÓNIA GOSTA, A DITADORA ENCAPOTADA!
A D. Antónia Gosta é governante numa casa pequena mas confusa, onde habitam pessoas de todas as idades, mas, vá-se lá saber porquê!, teima em considerá-las e tratá-las todas como crianças.
De um modo geral, ostenta uma face bonacheirona, espalha optimismo e parece que está sempre a rir – vá-se lá saber porquê! –, mas, quando lhe dão os azeites – passe a foleirice da expressão –, não é para brincadeiras. Certa vez, inclusive, os seus ajudantes tiveram de a afastar dum velho que teimava em arremessar-lhe um boato, apesar da sua insistência no respetivo desmentido. Ora, por muita razão que tivesse, não foi bonito ou, sequer, justificado, quanto mais não fosse, pela idade do boateiro e, vá lá!, por lhe caber (à D. Antónia) a responsabilidade de se comportar à altura de uma governante que se preze.
Não valeria a pena repisar neste episódio de má memória, não fosse ele próprio (já) revelador de certos tiques, que, apesar de manter disfarçados sob a imagem de bonomia, reforçada pela fofura do corpinho anafado, aí começaram a revelar-se ou a confirmar-se (no caso de pessoas mais atentas ou informadas).
Refiro-me a tiques de, como dizer?, de ditadora, pessoa que quer os seus governados – esses que, como acima se disse, trata indiscriminadamente como se fossem todos criancinhas... estúpidas ou, no mínimo, parvinhas – muito bem adestrados e não hesita em recorrer a todos os meios para o conseguir.
É claro que, nesta estratégia, a D. Antónia beneficia do total, diria mesmo, cúmplice, apoio do avô (não dela mas das crianças). Trata-se de um idoso com imensa pedalada, mesmo não dormindo, com olhos azuis e enorme tendência para beijos, abraços e, sobretudo para ser – e continuar a ser, ao menos enquanto puder – o avô mais querido de todos.
Ora bem, o pior foi quando as coisas pareceram normalizar e a D. Antónia e o avô desataram a incitar as crianças a sair e comprar caramelos, chupas, refrigerantes e um longo etc. de coisas que fazem circular e crescer a economia, que, coitada, resultou um bocado murcha, na decorrência da anterior ordem de exílio caseiro. As crianças – aliás, tal qual os adultos... –, sabe-se como é!, quando se lhes dá a mão pedem logo o braço e por aí fora e, mais cedo ou mais tarde, está escrito, as coisas voltam a complicar-se e a D. Antónia, com o apoio do avô, tem de tomar medidas.
Está um bocado à nora, porque, constrangida com o estado da economia, não pode voltar a fechar as crianças em casa; por outro lado, em bom rigor, bem sabe que foi ela a mandá-las para a rua, sempre com enormes louvores à forma como se tinham comportado (como se portarem-se bem fosse um mais em relação ao simples cumprimento do seu dever!). Acresce que, tal como as coisas descambaram e começam a aparecer buracos por tudo quanto é lado, fica receosa de que lhe peçam responsabilidades, e, em última análise, venham a retirar-lhe a governança. Está como tola no meio da ponte!
Todavia, não é de seu feitio permanecer em tal estado demasiado tempo; por um lado, é perita na arte da autodefesa e da artimanha, por outro, beneficia da protecção do avô. Assim, juntam-se ambos e combinam, bzzz, bzzz, bzzz. E, mal o pensam, melhor o põem em prática.
A D. Antónia, secundada pelo avô, começa a espalhar que a culpa é das crianças, que são umas descuidadas, que mais isto e mais aquilo, que assim não pode continuar e, quando o terreno já está bem preparado, exibe o golpe por trás das acusações: ameaça as crianças de que vai passar a controlá-las uma a uma, não ela directamente, que não chega para tanto, mas a polícia da casa, e que se não ficarem away – sim, em inglês! – de certos comportamentos, vão ter de pagar fortunas – o que, de resto, bem preciso é, pois os cofres da casa estão a rasar o vazio.
Vai daí, as crianças, prontas a obedecer, começam a ouvir a vozearia das crianças mais esclarecidas da casa e, mesmo, dos polícias, a chamar a atenção, que assim não, não pode ser, nem as regras da casa o permitem, quanto mais o bom senso e a boa e sã governança! Num instante, esquecem a ameaça e as vozes esclarecidas, voltam à brincadeira e, como, apesar de ser outono, o tempo está esplendorosamente estival, enchem as esplanadas e passeiam-se pelas ruas, em amenos e descuidados convívios.
O avô acobarda-se, não adianta opinião convincente sobre a ameaça da D. Antónia, e esta, sempre risonha e anafada, acaba por afirmar com todos os dentes que não, não se trata de uma ameaça, nunca esteve em causa impor nada, mas tão só levar as crianças a aderirem, até porque, se estas aderirem voluntariamente (ainda que sob ameaça...) não é necessário impor nada! E que não, não se reconhece como uma ditadora, longe dela, ahahah.
E é isto, a D. Antónia Gosta bem pode dizer que não é uma ditadora, mas lá que tem tiques de ditadora, ai isso tem! Mas – v´am lá ver, como ela diria –, isto sou eu a pensar!
terça-feira, 13 de outubro de 2020
AVEC LE TEMPS...
quinta-feira, 1 de outubro de 2020
CINZENTO-ALMA

quarta-feira, 12 de agosto de 2020
O MISTÉRIO DO FUNDO DAS ESCADAS
Algo que li naquele livro conduziu-me à cave, mais concretamente, ao pequeno compartimento disfarçado sob as escadas que a serviam. Não me recordo se tinha porta (esta noite, sonhei que sim), mas isso não passa de mero pormenor irrelevante, porquanto, para mim, sempre se revestiu do mistério dos espaços fechados a sete chaves, destinados a abrigar monstros, fantasmas ou simples objectos que num repente ganham vida, prontos a atacar ao mais pequeno descuido de quem, desprevenido, se atreva a visitá-los ou apenas espreitá-los.
Aliás, a própria cave, vá-se lá saber porquê, também me inspirava certo temor ou, no mínimo, inquietação. Todavia, não passava de uma simples cave, de resto, bastante ampla, do tamanho da própria casa. Desdobrava-se em quatro enormes divisões: uma servia de adega e, como tal, as suas paredes eram forradas de uma estrutura de madeira onde repousava um exército de garrafas; noutra atulhavam-se enormes arcas e um comprido tabuleiro de madeira, destinados a guardar os produtos vindos da terra, desde feijões a fruta; seguia-se aquela onde residiam diversos brinquedos e, mais tarde, caixotes e mais caixotes de livros e cadernos, documentando a nossa passagem – minha e do meu irmão – pela escola, o liceu e a faculdade (do que só vim a aperceber-me demasiado tarde); finalmente, em frente às escadas que vinham do rés-do-chão, encontrava-se a sede da máquina de costura Singer e de uma enorme arca ou malão para onde eram atirados os trapos em desuso, incluído o vestido de noiva de minha Mãe – escusado será dizer que, com muita pena minha, a traça era a verdadeira dona daquele espaço. Comum a todas as divisões eram as teias de aranha pendentes dos altos tectos e as janelas rectangulares, de caixilhos vermelhos, defendidas por gradeamentos decorativos, verdes escuros, que davam para o jardim; também o soalho de madeira e um corredor de cimento que as ligava.
Embora não fosse habitual, cheguei a brincar na cave, na companhia de outros miúdos. Porém, descer à cave desacompanhada representava uma espécie de aventura, se bem que apenas sob o prisma do receio de perigos ignotos e não pelo empolgamento da curiosidade e da recompensa gratificante.
Porém, o que verdadeiramente me causava arrepios era o tal desvão (aquele aproveitamento do parco espaço sob as escadas, aliás, desnecessário, pois, se havia coisa que não faltava, era espaço disponível para arrumações e o mais que fosse, nas quatro referidas divisões).
No fim das escadas, lá estava ele, com a sua escuridão à espreita, pronto a atrair para dentro da sua barriga húmida e sinistra o mais inocente e desprevenido dos mortais. Para cúmulo, embora fosse dotado de uma lâmpada, esta estava sistematicamente avariada, adensando – se possível! – a ameaça do terrível mistério escondido.
E que escondia o interior daquele espaço vivo ou morto-vivo? Pois, nada de especial, apenas mais uma miríade de objectos caídos em desuso, mas que, pelos vistos, não havia vontade (ou coragem) de deitar fora: o triciclo, a bicicleta de pneus furados, montes de pares de sapatos e malas, sobretudo meus, alguns abandonados por mero cansaço e não por excesso de uso, etc. Enfim, como eu bem sabia, nada susceptível de justificar a minha inquietação e temor. Só que, como tantas vezes sucede, o que eu sabia não coincidia com o que sentia.
Após ter deixado de viver naquela casa, sempre que aí regressava experimentava a mesma inquietação com a cave e, em particular, com o seu esconso, ao ponto de andar sempre a fechar a porta que dava acesso às respectivas escadas, como se assim pudesse travar o que quer que de lá pudesse sair (e não estou a pensar em simples correntes de ar, embora também não saiba de que poderia tratar-se). Todavia, meus Pais insistiam em manter a porta aberta, ignoro por que razão.
Certo dia, depois de a casa já ter sido esvaziada, o que lhe conferiu um peso descomunal e insustentável, fui visitá-la uma última vez, na esperança, tornada necessidade, de desvendar o mistério da cave, ou melhor, do sinistro e ameaçador compartimento situado sob as escadas.
Mal abri a porta da rua, o silêncio envolveu-me no seu pesado manto negro, quase me paralisando pernas e braços. Comecei a respirar com dificuldade, à medida que tentava avançar, afastando as franjas que me atavam os membros e enegreciam a alma. Nem sequer podia socorrer-me de um copo de água, pois a água havia sido cortada há muito.
Após um esforço desmedido, lá consegui arrastar-me pelo corredor de mosaico que conduzia à porta da cave. Encontrei-a aberta, como no tempo em que meus Pais insistiam em a manter assim. Então, a opressiva presença da ausência deles pesou-me (ainda) mais do que o espesso manto de silêncio que me aturdira à entrada, ensaiando manietar-me os movimentos e travar-me o avanço.
Segurei corajosamente a lanterna de que me munira – como é natural, à semelhança da água, também a luz havia sido cortada – e ensaiei passos leves nas escadas, cuja madeira, de há muito poupada a outras passadas, se queixou num murmúrio dorido.
Venci o primeiro lanço e atirei-me ao segundo, o que virava para baixo, em direcção ao corredor de cimento. Do lado direito, lá estava aquela boca aberta, expelindo nada mais que um monumental negrume, de cujos insterstícios espreitavam dentes ameaçadores, amarelecidos duma velhice que era mais eternidade.
Controlando a tremura interior, respirei fundo e dei um passo em frente, pronta a mergulhar naquela gruta cominadora e a enfrentar o terror que aí se albergava. À medida que avançava, tive de inclinar o corpo, pois o tecto ia decrescendo, adaptando-se ao declive das escadas sob as quais se situava. Mãos suaves como veludo pousaram no meu rosto e cabelo, provocando-me um arrepio de terror. Não conseguia vê-las, apenas sentir-lhes a textura e aperceber-lhes, ao de leve, a cor, cinzenta escura. Senti-me agoniada, mas prossegui, afastando aquelas mãos com as minhas, que brilhavam, brancas e trémulas, à luz desmaiada da lanterna, ela própria prestes a desmaiar.
Pelo caminho, fui encontrando objectos vários, entregues a um abandono cuja dor só as pessoas abandonadas poderiam entender – foi o que pensei e creio que com razão, até porque, se quem abandona conseguisse entender, talvez se forçasse a rever a sua posição, embora para isso carecesse de empatia, o que, por certo, quem abandona não possui.
Estes pensamentos distraíram-me e com a distracção consegui ver mais claramente: atrás dos objectos, ou melhor, escondidos atrás daquela miríade de objectos (tornados) inúteis, encontravam-se uns olhos amendoados de menina de tranças. Um bibe com coelhinhos bordados em relevo cobria-lhe os joelhos. Sorriu-me timidamente e eu devolvi-lhe o sorriso tímido, como se entre mim e ela apenas residisse um espelho e não a escuridão espessa e o silêncio pesado daquele sinistro lugar. Depois, a menina estendeu-me as mãos e, como se no tal espelho, estendi-lhe as minhas. Os seus olhos de amêndoa sorriram aos meus e vice-versa e ela disse e eu disse, tal qual um eco, "leva-me daqui", "leva-me daqui". E prometemos uma à outra que sim: "Vem, levo-te comigo", "Vem, levo-te comigo".
Subimos a escada juntas, sem perguntas, mas também sem respostas. Se monstro havia naquele compartimento, para lá ficou. Comigo só veio a menina dos olhos de amêndoa.
Desliguei a lanterna, fechei a porta da casa e só me lembro de ter pensado: para sempre! À cautela, guardei a chave, para nunca mais.
Nota: Esta ficção, baseada em aspectos autobiográficos (a cave existiu, com a configuração descrita), foi-me inspirada pelo livro Vem Aí o Senhor, de Gonzalo Torrente Ballester (o primeiro da trilogia Os Prazeres e as Sombras). Concretamente, pela parte em que o protagonista encontra como razão do seu regresso à casa de família (há muito desabitada) a curiosidade por desvendar o que se situa atrás da porta da torre que sua mãe havia mandado fechar para o impedir de aí aceder. É assim a Literatura, um manancial de inspiração e de comunhão de ideias!